10.6.17

Diário de Bordos - Vila Real de Sto. António, Algarve, Portugal, 10-06-2017

Não dormi vinte e quatro horas - há sonhos inatingíveis - mas de resto tudo se concretizou. Lisboa entrou por mim adentro tal um couraçado por uma cidade indefesa (analogia a ler com atenção, não se lhe inverter o eixo). Fui ao Tabernáculo do meu irmão Hernâni beber mojitos, ao Povo comer um prego e dormir ao Areeiro. De manhã tratei de tudo o que tinha a tratar, mais ou menos (computador, óculos e bicicleta. Isto parece um remake. Há um ano exactamente precisava das mesmas coisas, sem tirar nem pôr, mas hoje estou melhor e encontrei melhores soluções. Se para o ano precisar outra vez vai ser uma brisa).

E à tarde Lisboa fugiu-me. Lisboa é um cais, um ponto de partida e de chegada, uma ponte de ontem para amanhã na qual por conseguinte todos os dias são hoje. E foi assim que de repente, neste período em que tanto tenho pensado nas relações do passado com o resto vou parar a Vila Real, encontrar-me com um amigo dos meus treze anos. Tirando a família é a pessoa que conheço há mais tempo. Não nos vemos desde que saí de Quelimane, há quarenta e cinco anos.

Brinco com esta esta ideia de que vivi coisas na minha vida há quarenta e cinco anos como um puto com uma bola nova no jardim da avó.

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No comboio reconheço o senhor do bar: foi o que me ofereceu a cerveja o ano passado com o pretexto - de tão sólido deixa de ser pretexto e passa a razão - que a cerveja devia estar fria. Ou coisa que o valha.

(Acrescento que o comboio vai de novo cheio, alguns ares condicionados funcionam - nem todos - e que desta vez ele não me ofereceu vinho, que era de Cantanhede e bom).

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Tentou seduzi-la abusando dos parênteses mas entretanto ela crescera e começara a preferir itálicos.

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No aeroporto de Atenas abriu (há dois meses, diz-me a empregada – jovem, claro -) uma livraria. Dito assim a coisa parece banal. Livrarias em aeroportos é coisa que mais há por esse mundo fora. Lembro-me particularmente de uma no aeroporto de Salvador onde comprei – para oferecer a uma jovem senhora - um livro de Jorge Amado que ainda hoje é um dos meus livros favoritos. Porém a livraria no aeroporto de Atenas tem uma particularidade rara: é boa, óptima, excelente. Pergunto-me se tal como há pessoas interditas de entrar em casinos não deveria criar-se uma categoria de pessoas proibidas de passar a menos de cinquenta metros de uma boa livraria. Ou então criar categorias dentro das livrarias: “Livros para tesos”; “Livros para remediados”; “Livros para gajos preparados para saltar uma refeição ou duas por causa deles”; “Livros para ricos”.

E discos. Comprei um de Eleni Karaindrou chamado Music for Films. É a música de três filmes de Theo Angelopoulos, por Jan Garbarek e mais uma série de outros que não conheço (como de resto não conhecia a senhora Karaindrou).

Ainda só ouvi um bocadinho. Acho que o meu projecto de um dia comprar um televisor no qual possa ver filmes se vai concretizar brevemente.

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Vila Real, pela segunda vez; mas desta é diferente; é como se fosse a primeira: tenho um guia.

Esta coisa de estar com alguém que não se vê há quarenta e cinco anos tem um lado curioso: o que ouvimos de nós nessa idade não é uma novidade; novidade é ter sido vista.

Ontem apanhei uma competentíssima (passe a imodéstia) narsa num bar cujo nome não fixei. Hoje almocei um soberbo carapau grelhado no restaurante O Pescador (e provei o pargo e a anchova, ambos igualmente bons). Hoje à noite talvez haja ostras.

Talvez: o Sul e a certeza não se dão bem.

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O meu laptop Asus continua a ageniar. Os problemas são os mesmos desde o dia em que o comprei: bloqueios e placa de rede. Para aqueles encontrei uma solução: dar uma sapatada com ele na mesa e hey, presto! a coisa recomeça a funcionar. Uma exploração mais metódica ensinou-me que se for eu a dar a sapatada (não precisa de ser muito forte) no objecto o efeito é semelhante.

Já para a placa de rede não há solução, se não mandá-la para a p que a p e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar. E reiniciar. E reiniciar. E depois usar o telefone portátil.
E resistir à tentação de lhe dar uma sapatada definitiva.

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Dormi até às onze da manhã. É a primeira vez desde que cheguei a Atenas que durmo até ao fim do sono, passe o cliché merdoso. Talvez pudesse dizer "até ao fundo do sono". Foi por onde esta noite andei.

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Gosto deste calor amodorraçador. Não há nada a fazer se não beber rum, escrever disparates e esperar que passe. Infelizmente isto tudo vem acompanhado por uma música medíocre; e eu com a Eleni coisa na mochila.

O café Puro Café é uma merda, mas as mesas têm tampo de mármore e não tem ar condicionado (ou tem e não funciona). E tem rum Legendario, que não é o meu favorito mas está longe de ser mau. E é pequeno. Fico-me. Contemporizar com o que se tem à mão é uma qualidade que levei muito tempo a adquirir; não a vou perder já.

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