29.6.17

Mar, água doce

Imagina por exemplo as paisagens desta manhã, aqueles portentosos nimbus cinzentos, carregados de chuva, ameaçadores. A chuva acabou por cair noutro lado, mas a ameaça estava lá, deslocava-se lentamente, réplica celeste à falta de cor da cidade na qual tu te perdes e que por isso ficas a conhecer mais depressa do que se tivesses uma carta e por ela te guiasses. Foste comprar uma camisola que logo a seguir esqueceste no restaurante Cardoso: há coisas que não mudam.

Uma vez mais confirmaste que se deve regularmente provar aquilo de se pensa não gostar: hoje calhou a vez às francesinhas das quais deixaste de poder dizer "Não gosto". Entretanto a cidade enchera-se de cor: são as festas de S. Pedro, os feirantes montam as suas barracas nas ruas, vendem-se cuecas e meias, uma senhora grita "venham ver os preços da cigana!". Um pouco mais à frente o senhor que hoje de manhã parecia escandalizado pois a livraria estava fechada e já passavam quinze minutos da respectiva hora de abertura. A cidade respira, apesar de os stands estarem encavalitados uns nos outros nestas ruas estreitas e sinuosas. O homem do talho vem à porta, não vês se para fumar um cigarro se para olhar para a feira. O acesso ao talho não é fácil. Será que isso o aborrece? Não sabes. Não queres saber, de resto: um dia as palavras permitir-te-ão escolher uma das alternativas. É para isso que servem.

Um pouco mais longe os vendedores de roupa e sapatos são substituídos por africanos que vendem aquelas horrorosas girafas, porta-moedas de couro sintético e capas para telefones. Falam uma língua que tu não identificas. Perguntas a hora a um deles, para ver se pelo sotaque lá chegas. Não. Talvez sejam senegaleses. A maioria é Bantu mas há alguns Nilóticos. "De qualquer maneira os San não emigram", pensas. "Porque será?"

A pergunta é estúpida. Nem nos países deles os vês.

À tarde vais dar um passeio pela Serra do Alvão. É um parque natural. Ainda há nimbus, mas menos. Chove de vez em quando, aguaceiros ligeiros. A paisagem é bonita: minifúndios, casas tradicionais, de vez em quando uma casa de emigrante. Pensas no amor e no medo, perguntas-te "como será,  quando estiver apaixonado?", temes não o vir a estar, temes sofrer. Há sempre lugar para mais uma dor na grande mesa do amor.

Não é para isto que servem as palavras. (É uma pergunta. Só falta o ponto de interrogação).

Vais dormir, mas antes lês mais um artigo da revista literária que compraste de manhã. Pensas no livro de Carpentier que tem umas descrições magníficas, frases intermináveis como caminhos de montanha no meio das paisagens que viste hoje à tarde. Perguntas-te "para que servem as palavras? Para que serve o amor?"

Tentas responder: as palavras servem para cobrir a dor, como o edredon no qual te proteges do frio te cobre dos pés à cabeça.

As montanhas não são muito altas: mil e duzentos metros. São menos redondas do que as do Jura e menos ásperas do que as dos Alpes. Pensas em todas as montanhas que já viste, das nuas de Cabo Verde às da Costa Rica ou das Caraíbas, cobertas de vegetação. Lembras-te dos passeios que davas no Mpumalanga. God's Window. Os elefantes naquele parque cujo nome insistes em não reter. Pensas nas montanhas do Leste do Zaire.

Hoje viste, finalmente, o que te espera. Veio numa palavra como um bebé trazido no bico de uma cegonha nos livros infantis. Tentas afogar essa palavra com um ror de outras. Como se usasses o mar para esconder meia dúzia de gotas de água doce. Meia dúzia de gotas de sangue. 

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