5.9.17

Diário de Bordos - Comboio Lisboa - Évora, Portugal, 05-09-2017

Começo pelo fim, que foi o princípio do dia de hoje: dar graças ao senhor revisor da CP que me autorizou a bicicleta no comboio, desincentivou a compra de um suplemento primeira classe por causa da dita bicicleta e me disse para a trazer para o bar (infelizmente fechado; mas se estivesse aberto não a poderia ter comigo aqui), neste comboio cujas rodas são ovais, a julgar pelos solavancos
[o revisor diz-me que "vamos a duzentos quilómetros por hora", quando faço a observação. É bom ver pessoas com brio profissional, apesar de me parecerem demasiados quilómetros para tão poucas horas].

A Peugeotte [Le Mans, vejo agora] aguenta-se, apoiada nos tamboretes de bar; eu lá vou falhando regularmente a pontaria dos dedos nas teclas. Mas portamo-nos todos bem: ela, eu, as minhas diferentes dores e os meus sacos. Fazemos um conjunto coerente, parece que vamos a caminho de um livro de Beckett. "Miguel ressuscita"... Humm, demasiado optimista para título do Samuel, mas "Miguel tropeça e cai" não é verdade. Faltaria "e levanta-se, feliz da vida".

Enfim, mais ou menos. Não me queixo, essa é que é a verdade: aspiro a uma vida mais calma, é tudo. Desde que continue a incluir Painkillers no Soggy Dollar, pintxos na 5ª Puñeta (fica em Palma e chama-se mesmo assim), mar e vento e sol e velas no mar (numa embarcação em bom estado), tapas em la Coruña, rum punches no Lagoonies em St. Martin, livros em todo o lado, poesia no Povo às segundas-feiras e jazz no Tati aos domingos.

(Por falar em Tati: fui lá jantar, recentemente. É tão impossível comer mal no café Tati como ler uma frase má escrita pelo Garcia Marquez. Há pessoas assim, não é? Mesmo que quisessem não seriam capazes de fazer o que fazem mal feito).

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A patetice e o patético são dois postes de uma baliza que andam quase sempre juntos; nem sempre, claro: há muitos patetas que não são patéticos. Vice-versa. Ainda não percebi bem é se quando andam juntos se atenuam ou se pelo contrário se potenciam.

Não sei. Mas sei que a palermice tem uma forma estranha de lidar com as asneiras, a própria e a alheia: aquela não existe e esta é ubíqua. Ouvir um palerma falar da palermice é como ouvir um português falar dos portugueses: parece que é de Marte (ou Vénus, respectivamente).

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O Verão passou depressa, queixa-se um cartoon que vi hoje no Facebook. Também acho. Em Dezembro será pior ainda e eu estarei a caminho de St. Maarten, talvez. Estou inquieto com o Irma: é forte e vai passar mesmo por cima. Espero que os meus amigos lá atravessem esta prova e saiam ilesos.

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Embato de novo com o ritmo de trabalho português, com a falta de respeito pelos elos fracos da corrente e subserviência perante os mais fortes. "Portugal é um país de merdosos", disse um dia José Miguel Júdice. Não conheço a produção intelectual do homem mas esta é uma grande verdade.

Decidi porém que não me queixo: é mal-educado queixarmo-nos de um país que não é o nosso. Quem não está bem muda-se e eu não me mudo. Nem mudo.

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