19.11.18

O que parece nem sempre é

A história sai na sequência de uma troca com a A. V. e com F.V.F., mas anda para ser contada há muito tempo. Só me faltava encontrar-lhe o ângulo, por assim dizer. Cá vai:

Poucos anos depois de chegar a Genebra abri uma empresa de charter nos Açores. Passava lá metade do ano e aqui a outra metade, a fria. Nesses invernos só fazia trabalhos temporários, encontrados através da Manpower, se não estou em erro (isto passou-se há muitos anos e alguns pormenores falham; mas o essencial está correcto). Um dia fui parar a uma empresa que fazia reinserção de pessoas recém-saídas da prisão. Não me lembro de qual a sua actividade, mas lembro-me do que fiz nas duas ou três semanas em que lá trabalhei: preparar stands para o salão do Automóvel de Genève. Éramos seis ou sete, dos quais metade saídos recentemente da prisão. Na minha equipa havia dois desses, o "Paul" e o "Richard". Paul era alto, esguio, viscoso. Tinha o corpo e o comportamento de uma enguia. Richard tinha uma estatura média, largo de ombros, forte; era o tipo de pessoas com quem só um cego se mete na rua. Transpirava maldade, brutalidade por todos os poros.

Tratava-se porém de um homem correctíssimo, que levava com modéstia o seu papel de herói da empresa - era o que tinha feito mais anos de prisão -; quando se apercebeu de que eu lia jornais todos os dias levava-me um ou dois, roubados nas caissettes. Uma vez fiz-lhe ver o absurdo de ele roubar jornais que eu podia ler gratuitamente no café; respondeu-me "Tenho de fazer um pequeno delito ("larcin") todos os dias, se não não me sinto bem". Richard contava-me muitas histórias da prisão, mas nunca me disse porque tinha sido preso (nessa altura confirmei o velho adágio de nunca perguntar a alguém porque esteve preso). Designava as cidades pelo nome das respectivas prisões: Genève era Champ-Dollon, Lausanne Bois-Mermet e por aí fora.

Tanto Richard, com quem eu me entendia bem, como Paul tinham o cuidado de todos os dias deixar os contentores varridos, arrumados, limpinhos. Hábitos que teriam provavelmente trazido da prisão, mas que levariam um observador externo a pensar que estavam a concorrer para o concurso de empregado-modelo do ano.

Adenda: esses trabalhos temporários deram-me a ver uma parte da humanidade que por vezes nos escapa. Quando trabalhei numa empresa de reparação de elevadores tinha como colega um tipo que estava a regressar ao trabalho depois de um ano de baixa: o elevador onde estava a trabalhar tinha caído de um décimo quinto andar. Perguntei-lhe onde é que ele ia buscar coragem para voltar a fazer a mesma coisa. Encolheu os ombros e disse-me "Estas coisas nunca acontecem duas vezes".

Outra das minhas favoritas: uma empresa de montar andaimes. O nome era TPH - Toujours Plus Haut. Isto não se inventa... - Um dia vou com o meu colega e chefe de equipa fazer um trabalho atípico: montar um andaime no interior de um prédio, por cima da cage d'escalier, para se poder reparar a clarabóia. Chegámos cedo e o homem passou a manhã toda a olhar para aquilo; não conseguia encontrar uma maneira de montar o andaime. Depois do almoço disse-lhe para ficar a beber um café, eu tentaria encontrar uma solução. Ele não me tinha em muito alta consideração e deixou-me ir, provavelmente na esperança de que eu caísse e ele se visse livre daquela missão. Quando voltou, uma hora depois, o andaime estava praticamente pronto, seguro, utilizável. Voltámos para a empresa e ele foi a correr para o escritório. Não sei o que disse de mim, mas fui despedido nessa tarde. Já não sei porque razão o patrão falou com a S. e explicou-lhe que eu não era feito para aquele trabalho.

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