16.7.19

Paz, interstícios e apanhada

Sonho com interstícios, falhas, fendas, com o nada no meio. Ontem, por exemplo, falhei os hambúrgueres, ficaram uma porcaria sem fim; hoje vou aproveitar os que sobraram para fazer um molho de tomate. Depois do jantar fui com a C. beber copos para a Tasquita. Interstícios, falhas, fenda no meio das chamas, clareira. Não é inteiramente verdade: a meio do jantar recebi uma boa notícia, as chamas não desapareceram mas baixaram muito, os copos já foram uma celebração e a C. é a companhia ideal para isso, o único defeito dela é ter menos trinta anos do que eu, coisa que não tem cura, mais uma falha. Bebemos Orujo, que é o bagaço dos espanhóis e Bailey's, designação irlandesa para "bem-estar em formato líquido" e voltámos para casa grossos e felizes. Ela está no terceiro andar, pergunto-me como foi trabalhar hoje, se está com uma ressaca igual à minha, pergunto-me como é que uma miúda de trinta anos do fin fonds do Wisconsin pode ser tão gira, isto é, gira (se bem uma não impeça a outra). Fartámo-nos de conversar, a Sandra (a dona da Tasquita) é outra, gira, bonita, fendas no meio destas pedras todas, pedras que voam, que se abrem debaixo de mim, lava ardente, um gajo anda, queima-se, chamusca-se, queima-se outra vez, falha miseravelmente um cozinhado e nos interstícios disto tudo estão duas miúdas que fazem esse mesmo gajo pensar ( e se calhar muitos outros, espero que sim) na sorte toda que teve, como é que uma vida a andar em pedra-pomes ardente chega a isto, uma noite de copos felizes, sensuais, inteligentes, articulados, sensíveis (refiro-me às miúdas, claro).

De maneira hoje resolvi tirar a manhã, que expressão tão bonita, vou tirar a manhã ao dia, fica um dia amputado, mais uma fenda, mais um interstício: tirei a manhã e ofereci-a às minhas células sedentas, coitadas, a tentar repor os níveis de água que o álcool lhes tirou, ofereço-a a mim mesmo, tão cansado, chamuscado mas tão vivo como se tivesse nascido ontem, como se tudo o que vivi até hoje coubesse numa fenda, uma minúscula fenda no tempo, uma minúscula fenda num corpo, aquele conjunto todo de Legos desencaixados, encavalitados uns nos outros em equilíbrios mais do que duvidosos, equilíbrios felizes às vezes, infelizes outras tantas menos uma: o saldo é positivo, por mais voltas que se dê à pilha e aquilo tudo ali metido numa aparente desordem, um ersatz de caos, as peças não caem porque estão unidas por um fil rouge, há qualquer coisa dentro delas que as mantém juntas, unidas, desorganizadas, amontoadas como se um colar se tivesse partido mas o fio que liga as pedras não, perderam a ordem mas o que as une continua lá.

Afinal já não posso ir a Lisboa como tinha planeado, é uma merda mas tenho de ver se chove um pouco, ver se a lava arrefece, se as chamas se esquecem por um momento de arder, ver se algures, se algures num corpo, algures num copo, num bar numa palavra, numa fenda, nos interstícios de tudo isto as minhas células reencontram a água perdida e eu a paz que por vezes, num interstício como o de ontem, entrevejo desfocada, trocista, a jogar à apanhada comigo desde que cresci.

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