24.8.19

Descrição aleatória

Esmaciado não existe em língua nenhuma que eu conheça. Espapaçado sim, por isso é menos adequado do que o outro, o que não existe. Esmacio-me por dentro e por fora, escorrego por mim como bocados de lama pela ribanceira abaixo, tento agarrar-me a qualquer coisa sólida mas tudo está igualmente esmaciado, tudo se desfaz, deve ser assim que um leproso vê os seus membros desfazerem-se, o corpo partir sem o estrépito dos icebergues, ajudado pelo olhar de repulsa dos outros, como se este o ajudasse a desfazer-se e não a salvar-se, reconstituir-se, um olhar sólido e afiado como lanças, mudo porque tudo isto dispensa sons, tudo se passa em silêncio, nada a dizer nada a ouvir.

Terá cheiro? Não sei, penso que não, nada acrescentaria, todos sabem que a tê-lo seria purulento, branco como pus fresco, para quê juntar o que já todos intuiram?

Não sou só eu que me desfaço. O tempo também cai em grandes e pequenos  bocados, os grandes são pedaços de vida os pequenos de dias ou semanas ou meses, deslizam uns pelos outros como caracóis por uma placa de gelo inclinada, nem a baba os salva.

A esta mistura de carne e de tempo alguns tentam dar nome, mas sem voz não conseguem, nem um mísero ai são capazes de articular e Deus sabe se o querem dizer, gritar, esbracejar, insinuar mudamente com as pálpebras (que se põem elas também a cair, isto espalhou-se por todos os que me olham, alastrou por essa cidade fora e agora são os prédios as casas as ruas sinais de trânsito bancos onde há pouco um casal de velhos descansava e um outro se beijava postes de iluminação pública de publicidade paragens de autocarros bocas de combate a incêndios pilaretes).

Tudo se mistura num magma silencioso e triste, sem morte e sem vida, sem luz nem som, viscoso, simultaneamente peganhento e repelente. 

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