2.1.20

Diário de Bordos - München, Bavária, Alemanha, 02-01-2020

A melhor forma de resistir às tentações é ceder-lhes, dizia o Oscar que acabou mal por ter cedido a todas, sobretudo às erradas (para quem então mandava, claro, isto de erradas ou não é como o resto, mudam). Eu descubro outra, mais eficaz ainda: não ter dinheiro. Felizmente tenho-o para as pequenas e não para as grandes e com isso confirmo que não fui feito para viver fora de cidades grandes, onde a cada esquina há uma papelaria com bom papel, uma livraria inglesa com «The Mirror of the Sea» do Conrad, maravilhosa e irresistivelmente ilustrado, com lugares como este onde agora escrevo - chama-se The Lost Weekend, é um lugar para estudantes universitários (à porta somos acolhidos com um dístico: «Love kills capitalism», assim mesmo em inglês, qu'isto de matar o capitalismo ou é na sua (dele) língua ou não é) - um restaurante como o Laden (ou Läden, ou coisa que o valha) [Zumladen, Turkenstrasse 37] onde comi uns gnocchi maravilhosos (infelizmente o vinho também era muito bom, um tinto austríaco leve, aéreo e caro).

Este país não é para mim: até o caos é organizado. Felizmente começa a haver excepções àquela regra de não atravessar a rua com o sinal encarnado - ainda somos uma minoria, mas pelo menos já não sou o único. Não consigo perceber o que leva adultos estatisticamente inteligentes a pensar que um sinal sabe melhor do que eles quando podem ou não atravessar uma rua. Há vinte (tosse... trinta) anos era apupado quando desrespeitava os sinais. Agora é comum ver duas ou três pessoas - incluindo-me - a confiar nos seus olhos e no seu julgamento e ninguém grita ou apupa. Pode ser que daqui a uns anos até o caos deixe de parecer organizado.

Espero que não. O mundo precisa da Alemanha como ela é.

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Vou ao supermercado comprar Ziplocs. Pergunto na caixa, a rapariga não percebe, não sabe, acaba por decidir que não têm. Atrás de mim uma outra jovem, pouco menos de trinta, explica-lhe, em alemão. A senhora da caixa continua a dizer que não há. A cliente diz-me «Espere, eu pago e vou consigo.»

No caminho explica-me «Nem alemão sabem falar correctamente...». e leva-me a uma prateleira cheia de Ziplocs. Compro os errados, claro, mas pelo menos agora sei como se chamam aqui.

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À minha frente tenho uma cena que me transporta para o Jules et Jim, em mais novo e com personagens mais feias, mas igualmente alegres. Mulheres mais bonitas do que a Jeanne Moreau não se encontram num café de estudantes que propõe matar o capitalismo com amor, eu sei.

Confirmo o que disse no outro dia: a beleza é a verdade, reside na verdade e estes três são verdadeiros, são bonitos.

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«Fortunately, nothing can deface the beauty of a ship.» Joseph Conrad, in The Mirror of the Sea.

Percebem o que quero dizer? «A ship anchored in an open roadstead, with cargo lighters alongside and her own tackle swinging the burden over the rail, is accomplishing in freedom a function of her life.» Se não perceberem, não faz mal. Penso que é preciso ter vivido isto para perceber mais longe do que a elegância do inglês do senhor. Verdade seja dita, esse inglês é suficiente.

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Jules e Catherine foram-se embora. Ficou o Jim. E eu, com o meu Syrah sul-africano, os meus sonhos - Mértola, P., Moura, livro(s), Ler por aí..., casar-me e ter fihos, ler tudo o que me cai nas mãos, escrever tudo o que me vai pela cabeça - e a noite, que cai devagar, já caiu, coitada, não tropeçou sequer, chegou como as penas do badminton, como algumas penas que se esperam e mesmo assim aparecem onde menos se esperam, tal como outras aparecem onde são esperadas. 

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