24.2.20

Lições de vida

Um dos múltiplos empregos estranhos (no sentido de pouco habituais, inesperados) que tive foi numa empresa que fazia limpezas, montagem e desmontagem de stands para o Salão do Automóvel de Genebra. A companhia tinha um código de conduta social bastante devoto e a maioria dos empregados permanentes era gajos acabados de sair da prisão ou que lá tinham passado uns tempos. Estávamos divididos em equipas, cada uma com quatro ou cinco pessoas. Eu era o único que na minha nunca tinha sido preso (enfim, se exceptuarmos uma noite em Lisboa e outra em Lausanne, ambas devidas ao excesso de líquidos e terminadas mal este se tornou imperceptível). O grupo era composto por presos "ligeiros" - gajos que tinham feito penas curtas, meia dúzia de meses, um ano - e por um pesado (a sua última estadia, como ele lhes chamava, tinha sido de seis anos). Era incontestavelmente o chefe do grupo, mesmo que eu ocupasse uma espécie de lugar honorífico. Não me lembro do nome do homem e tenho pena, mas vamos chamar-lhe Jean.

Gostava de mim (coisa que eu silenciosamente lhe agradecia todos os dias), era inteligente - os outros não eram - e ensinou-me uma data de truques. Por exemplo, onde nos devemos pôr quando carregamos a dois uma coisa pesada, consoante o trajecto sobe ou desce (lamento imenso ter esquecido este ensinamento, embora saiba que é fácil de recuperar).

Jean apercebeu-se de que todos os dias eu chegava ao trabalho com o Journal de Genève debaixo do braço. Era o jornal liberal, económico, intelectual de Genebra. (Desapareceu, claro, juntamente com os seus opostos ideológicos. A economia quando bate, bate a todos.)

Um dia - muito rápido, não chegou a uma semana - Jean aparece-me com o Journal de Genève e diz-me "toma, é para ti." Obviamente percebi logo que ele o tinha roubado da caissette, mas não disse nada. À terceira vez, contudo, não me retive.
- T'es con? Pourquoi tu fais ça?
- Tu t'en fous. Pas ton problème. T'en veux d'autres, de canards ?
- Non, laisse, c'est bon, merci. C'est le seul que je lis.

Uns dias mais tarde explicou-me:
- Il faut que je fasse un larcin chaque jour, sinon je be me sens pas bien. Ca me manque, c'est comme si je n'avais pas mangé.

Uma vez perguntei-lhe o que é que ele tinha feito para ter passado tanto tempo na prisão e ele respondeu-me, firmemente (mas não zangado): "Isso nunca se pergunta!"

Jean era boa pessoa. Sentia-me em confiança com ele, apesar de saber que se um dia ele a perdesse comigo eu teria de procurar outro emprego imediatamente.

Um dia contou-me que em Champ-Dollon (a prisão de Genebra: Jean referia-se às cidades pelo nome das respectivas prisões) tinha ajudado um outro preso, assediado pelo "mau" (o termo é meu. O dele seria "chefe", ou "boss" ou coisa que o valha) da ala onde estavam. Para lhe agradecer, o ajudado propôs-se fazer-lhe um broche todos os dias.

Jean recusou. Pediu outra coisa qualquer em troca - comida, cigarros, não me lembro.

«Não foi para ajudar o miúdo que fiz aquilo, percebes? É porque sou contra a violência e aquele gajo [o "mau"] estava a pedi-las.»

A transcrição não é literal, claro. Isto foi há muitos anos, muitas vidas. Mas nunca mais hei-de esquecer aquele grupo de ex-reclusos, que varriam cuidadosamente os contentores, despejavam o lixo religiosamente nos caixotes e se deixavam chefiar por um brutamontes que era contra a violência.

1 comentário:

  1. "- Il faut que je fasse un larcin chaque jour, sinon je be me sens pas bien. Ca me manque, c'est comme si je n'avais pas mangé.!
    ...manter o nível mínimo aceitável de adrenalina não deve ser fácil. :-)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.