20.3.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-03-2020

Janto de pé, no canto da cozinha perto do lava-loiça. Pão torrado, uma fatia de manteiga espessa como queijo, uma de queijo alta como uma de pão e o pão, bem, pão. Copo de vinho, Noa no Windows Media Player - à espera do Paul Simon - silêncio na rua. Penso nas pessoas chatas como sandes sem manteiga e apercebo-me de que posso brincar com os dois sentidos da palavra chata: ela era chata como... O gajo era chato como... Olho para o queijo e lembro-me do meu Pai, que um dia me viu pôr manteiga num bocado de pão e se exaltou "Porra, Luís, isso não é queijo" (foi na última glaciação), revejo passagens do The Big Sleep que releio. Vêm-me à memória lampejos de episódios, há muitas palavras que não percebo e penso - ou repenso? - que em Chandler admiro a justeza do tom, ele escreve como um piano afinado toca, em meia dúzia de linhas define a atmosfera de um capítulo. Não sou invejoso, juro que não sou. Mas... Quem me dera escrever assim, ser capaz de acertar a nota ao milímetro.

Pelo menos tento, vá lá. Mais vale perder do que não tentar.

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Consegui encontrar gel desinfectante. Tinha-o encomendado ontem. Só vendem um por pessoa, mas ficou outro pedido para amanhã. Se não aparecer ninguém que não tenha nenhum vende-mo a mim. Gosto de aplicar aquele princípio da marinha de guerra: um a uso, um em reparação e outro de reserva. Como neste caso não há reparações, podem ser só dois. Assim faço com tudo.

Excepto com a vida, claro. Essa não aceita nem reservas nem reparações. Há que usá-la o mais possível, não vá ela de bodas com um vírus qualquer caído do céu.

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Não me apetece formar opiniões sobre esta merda deste Covid. Limito-me a coleccionar opções, como um jogador de cartas as abre em leque à sua frente. Só no fim do jogo saberei qual devia ter jogado.

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«This room was too big, the ceiling was too high, the doors were too tall, and the white carpet that went from wall to wall looked like a fresh fall of snow at Lake Arrowhead. There were full-length mirrors, and crystal doodads all over the place. The ivory furniture had chromium on it, and the enormous ivory drapes lay tumbled on the white carpet a yard from the windows. The white made the ivory look dirty and the ivory made the white look bled out. The windows stared towards the darkening foothills. It was going to rain soon. There was pressure in the air already.»

(Raymond Chandler, The Big Sleep, ed. Penguin Books.)

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Uma cidade é feita de pessoas nas ruas, por muito bonitas que estas sejam. Uma rua deserta só seduz se antes tiver estado cheia de gente ou se o vier a estar depois. Não há beleza que resista à ausência, seja esta qual for.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.