13.4.20

H. e o tempo

Voltas e mais voltas, como água que se escoa pelo ralo. Mas este não se escoa: é o tempo. Cola-se às paredes, às janelas, às portas, escorrega pelas mesas como os relógios de Dali. H. sentia-se como se lutasse contra uma gigantesca teia de aranha invisível, fenómeno físico do qual só podia observar os resultados. O processo - os fios da teia, os movimentos desesperados que fazia com os braços e as pernas para se libertar - não eram perceptíveis a olho nu.

H. apercebeu-se de que as próprias paredes se moviam: acompanhavam o seu esbracejar, os seus pontapés,  as rotações do torso. Solitário, sabia que não podia esperar ajuda exterior mesmo que, num inesperado e improvável momento de modéstia, submissão ou aceitação a solicitasse. Era o epítome perfeito do homem solitário: nascera só, vivera só e não é desta que morrerá só.

"O melhor é parar", pensou. "Fazer-me de morto, enganar o tempo: fazer um arco de agora para o futuro. Ocupado como está a tentar afogar-me não se aperceberá. Não é fácil enganá-lo, eu sei. Mas tão pouco é impossível. Passar um cabo a um dia longínquo, esperar que faça fixe a qualquer coisa e deixar-me puxar, imóvel. Como se num túnel estivesse parado e fossem as paredes a passar por mim. Como se?" H. riu-se. "Como se num túnel... Onde pensas que estás? Numa planície ao ar livre?"

H. monologava e apercebeu-se de que a pressão de teia se aligeirara. Pouco, mas pelo menos já não o asfixiava. "O meu cabo está a funcionar. Talvez seja esta a solução: o futuro sou eu. Está em mim, digamos assim."

Parou e esperou. Enquanto não chegar, não se saberá como acaba esta história: faz parte do tempo, ela também. 

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