4.4.20

Planear uma viagem

- Quando é que começa uma viagem?
- Quando acabou a última, claro.
- Isso é impossível, porque as viagens começam, mas nunca acabam. Somos feitos de viagens como a bebinca é feita de camadas.
- Patetice. As viagens acabam quando chegas a casa. Ou quando regressas ao ponto de onde partiste.
- Patetice? Quando voltas não és o mesmo. Sem ti, a tua cidade transformou-se e longe dela tu mudaste. Não há regressos. Somos um tijolo em cima de outro tijolo em cima de outro tijolo e a argamassa que os liga é o que a viagem fez de nós e a sua memória, aquela que em nós perdura. Enquanto ela viver connosco a viagem não acabou.

Para mim, uma viagem começa quando começo o respectivo planeamento. Mas antes disso é preciso explicar que eu só viajo de barco. Por terra ou por via aérea não viajo, desloco-me. (Esta regra tem excepções, sobretudo no caso da via terrestre. Não são para aqui chamadas, agora.) Uma viagem marítima exige um cuidadoso planeamento e é disso que venho aqui falar.

A navegação começa com um ponto de partida e um ponto de chegada. Vês a distância e o rumo – a rota, ou o caminho. Se for em longitude decides se queres fazer uma ortodromia ou uma loxodromia. Como estamos a falar de embarcações de vela esquecemos aquela: um veleiro mede as distâncias em tempo e não em milhas. A duração de uma viagem num veleiro não depende da distância a percorrer. «Nós, que definimos a distância em dias, semanas, meses...» Quem disse isto? Pouco importa.

Sabendo o meu ponto de partida e o meu ponto de chegada, vou determinar quais os ventos predominantes ao longo desse percurso. E as correntes, claro, se bem nas longas distâncias estas normalmente sigam os ventos e nas curtas dependam das marés (isto é, da Lua, do Sol e do estranho baile que os dois dançam). Consulto as Pilot Charts (e se for caso disso as cartas de marés) que me mostram uns bonecos muito bonitos com flechas orientadas segundo a rosa-dos-ventos e de diferentes dimensões. (Claro que para as rotas habituais isso é conhecido de todos, mas aqui interessam-nos os caminhos pouco percorridos.) Em função dessas flechas escolho o meu percurso, que pode ser uma linha recta, um arco, um ziguezague ou uma combinação de tudo isto. Vejo se há obstáculos em cada uma dessas componentes: ilhas, baixios, piratas (sim, ainda existem, infelizmente) e adapto o meu percurso. Aqui chegado, tenho uma ideia aproximada do tempo que a minha viagem vai levar e pergunto-me:
- A embarcação tem autonomia para isto? Tenho combustível que chegue? E água? E provisões? Tenho de parar no meio para embarcar ou desembarcar tripulantes? O porto para onde vou não é um porto de entrada daquele país?

Bom, vamos recomeçar, desta vez introduzindo uma escala (ou duas, ou três, as que forem necessárias). A minha viagem tem agora vários pontos de partida e vários pontos de chegada. Os ventos não mudam radicalmente – podem mudar, perto das costas, por causa das brisas térmicas, mas isso fica para outras núpcias (uma viagem é um casamento e não vice-versa, contrariamente ao que muita gente pensa). Revejo obstáculos, baixios, correntes, ilhas, ilhéus, rochas e vejo se alguns desses portos tem constrangimentos ligados às marés, aos ventos, aos regulamentos administrativos. Posso entrar a qualquer hora ou tenho de esperar pela enchente? Posso – ou será prudente – entrar de noite? Nesse porto há abastecimentos, combustível, marina, reparações? Há serviços de saúde, para o caso de ter de desembarcar alguém doente ou acidentado?

Pronto, a primeira parte do meu planeamento está feito: sei de onde largo, sei para onde vou e sei onde tenho de parar entre os dois. Sei o que me espera em cada um desses portos, se as ajudas à navegação são fiáveis ou não, quais os documentos que as autoridades me vão pedir, se há constrangimentos ligados à nacionalidade de um dos tripulantes, se o porto é caro se é barato, se é fácil arranjar lugar ou se tenho de reservar com antecedência. Tenho planos dos portos, que encontrei nos guias náuticos – provavelmente a literatura de viagens mais apaixonante que existe.

Dito assim, isto parece que foi muito rápido, não é? Não foi. Precisei de consultar inúmeros documentos, confrontar informações, eventualmente falar com alguém que conhece a área, para tirar uma dúvida ou outra; de qualquer forma ainda não acabou: agora, ao longo de todo o percurso, tenho de encontrar portos para emergências. Pelo menos um ou dois em cada “perna” (navegação entre dois portos ou, em regata, entre duas marcas. É um anglicismo). E o processo recomeça, desta feita para os portos de contingência.

Planear uma viagem é como subir uma escada da qual não se vê o fim. Se quisermos ser mais românticos: é como fazer a corte à senhora que se ama. É preciso conhecê-la, saber onde e como abordá-la, a que horas, se é preciso licença do pai ou não.

É o princípio do prazer que ela nos vai dar, o princípio dos sacrifícios por que vamos passar, o princípio do mistério: cada viagem, mesmo aquelas que já fizemos muitas vezes, consiste em estabelecer uma cumplicidade com os elementos – o vento, as costas, o mar, os faróis e outras luzes, os recifes, os baixios, os portos. Planeá-la é como sermos apresentados à família da noiva, mas só com as fotografias de cada um. O processo é longo, moroso (quando não se conhece a área para onde se vai, claro. Se se tiver de planear uma viagem que já se fez dez vezes é muito rápido.) É, sobretudo, apaixonante. E é por isso que uma viagem nunca acaba: o que aprendermos nesta vai servir-nos para a próxima.

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