14.6.20

Diário de Bordos - Palma a calma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-06-2020

Onze da manhã de domingo. Palma começa docemente a fremir, muito levemente. Venho passear para a Palma extra-muros, a Palma que fica para lá das Avingudas e conheço mal. O S'Escorxador está aberto. É um antigo matadouro hoje convertido em zona de lazer e mini-centro comercial. Cafés, uma biblioteca, o único cinema da ilha que só passa filmes em versão original, um supermercado e dúzia e meia de lojas. 

Palma a calma, uma calma da qual é impossível não se gostar, por mais que às vezes canse. Mas descansa mais vezes do que cansa, essa é que é essa. Efeito das árvores, provavelmente. Tantas e tão grandes. Sombreiam as ruas e absorvem-lhes os ruídos. 

Anda mais gente de máscara na rua agora, que o governo ameaça com multas. E há mais tensão, mensurável à quantidade de buzinadelas ou reclamações de peões que oiço na minha Peugeot. Ouvi mais de umas e outras desde o fim do confinamento do que nos dois anos mais dia menos dia que o precederam. Verdade que são justificadíssimos, mas antes também eram e mais ainda, porque não conhecia a cidade como conheço hoje. Espero que não esteja para ficar. A bonomia era tão bonita... 

Ainda é, forço-me a reconhecer. Mesmo hoje oiço infinitamente menos imprecações numa semana do que num dia em Lisboa.

Porcaria das máscaras. A miúda do Mise en Place não a tinha. Esta tem. São as duas lindas, mas jovens demais para entrar na categoria mulheres espectaculares. Essa está reservada a senhoras com mais de trinta e cinco anos. Algumas nunca mais dela saem... Até aos trinta e cinco anos as miúdas são sacos de hormonas que só pensam em reproduzir-se. Precisam de ter um filho ou dois para que essas preocupações se diluam e os corpos se afirmem. Quem diz corpos diz cabeças, naturalmente. (E afirmem é figura de estilo, se por acaso.)

A miúda vem buscar a massa e no caminho baixa a máscara, para falar com duas amigas. É ainda mais bonita do que a imaginara. "Prefiro assim", digo-lhe. "Claro", responde. Gosto destes diálogos curtos e honestos, sem tergiversação. 

.........
Da calle Blanquerna desço para zonas que me são mais familiares: Santa Catalina, la Lontja. Digo desço em vários sentidos, alguns dos quais literais, outro menos: em Palma as ruas não sobem. Só descem. Algumas - raras - sobem e descem e uma, uma só, sobe sempre: chama-se Costa de sa Pols (Costa do Pó, em português, porque em cima fica a igreja e havia muitas caleches e coches a passar por ali). Essa só sobe, não sei porquê. (Talvez por causa do Antiquari, vá lá saber-se, que lhe fica a meio). Mas a esmagadora maioria das outras ruas de Palmas só têm sentido descendente. Voltasse eu agora para a Blanquerna e iria a descer. Uma das maravilhas de Palma, mais uma.

A lingua que se ouve na rua mudou: deixou de ser espanhol ou mallorquin e passou a ser inglês e alemão. Na Plaza Drassana escolho o bar Arenas, um dos raros que foge à regra. A empregada não me liga nenhuma: está ocupada a zangar-se com uma cliente cujos filhos desmontaram a fita que ela pôs em torno da esplanada, vá lá saber-se porquê. É uma daquelas disputas mediterrânicas que se eternizam, externalizam, envolventes e continuam mesmo depois de a mãe dos garotos se ter ido embora. Ao meu lado dois senhores que me parecem vagabundos, trolhas ou talvez sem-abrigo comentam, simpatéticos: "é a vida".

A empregada tem sangue na guelra, cabelo louro, deve estar quase a chegar ao mágico patamar dos trinta e cinco anos e agora zanga-se com um senhor - provavelmente pai dela - que levanta a mesa onde estavam a prevaricadora, filhos e (soubemos todos depois) mãe. 

A calma voltou. Palma, a calma.

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