42° em Mértola. Constato com satisfação que toda a gente anda de máscara, coisa que se justifica facilmente e se compreende ainda mais facilmente. Saio de casa e venho para o café Guadiana, centro da vida social, intelectual e cultural da vila. Sinto-me protegido, rodeado de devotos altruístas, amigos do próximo (neste caso eu) e de fantasias.
Usar máscara - diz meia dúzia de entendidos por esse mundo fora - tem tanta utilidade na luta contra o vírus como acender velas na igreja para acabar com os ciclones. Lutar contra as crenças é difícil, mas não devemos esmorecer: vejam o que aconteceu ao socialismo cientifico de Marx. Já nem os marxistas acreditam naquilo. Foram precisos - o quê? - uns míseros cento e cinquenta anos. Um ápice. Um ar que lhes deu. Aposto que lá para 2170 a crença na maldade do vírus será substituída por outra crendice qualquer. O homem não terá mudado muito - não mudou desde que pintava bisontes e mamutes nas paredes das grutas, não é agora com um vírus marado que vai começar a acreditar na razão - e motivos não faltarão, desde o arrefecimento global ao crítico problema da inversão dos pólos magnéticos, coisa que nunca se terá visto e será certamente provocada pelo uso intensivo de papel feito com folhas de alface e o terrível impacto disso nas criações automatizadas de minhocas.
Por mim, aceito tudo. O calor, a cerveja no café Guadiana (não há imperial), o terrível barulho do ar condicionado ("está velhinho, por isso faz esse barulho". É sempre bom saber a "causa das coisas"). Vim para dentro, mas a diferença de temperatura não justifica tal desgaste no capital de paciência e volto para fora. Ficar em casa é difícil, mas já o sabia e comovi-me na mesma quando cheguei com os meus sacos de livros, fiz as primeiras arrumações e descobri duas ou três coisas cuja existência me estava completamente obliterada da memória.
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Estou em Mértola, rodeado de devotos de S. Covid, banhado em calor, a beber cerveja insuficientemente gelada. Fico três noites. Como não aceitar tudo?
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As pessoas põem religiosamente a máscara antes de entrar no café. Antigamente, benziam-se quando passavam à frente da igreja. O mecanismo é o mesmo, porém este é-me mais dificil de aceitar, talvez por ser mais recente. Apesar de tudo a Igreja deu grandes obras ao mundo. Este vírus limita-se a expor as insuficiências cognitivas da população. Há uma diferença, convenhamos.
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O projecto de passar os dias em casa parece-me comprometido. Não importa. Os planos devem ser como os princípios do outro: se não servem, arranjam-se uns diferentes.
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No museu Vieira da Silva almocei a melhor feijoada brasileira que até hoje comi no hemisfério norte (e em grande parte do sul). Quinta têm cozido à portuguesa. Já um lugar para mim está reservado. Quem come fondue de queijo em Moçambique come um cozido em Portugal (este raciocínio é falacioso. A ver se os pró-Covid descobrem a falácia. É pouco provável, mas nunca se sabe. Althusser tentou inverter alguns andares da pirâmide de Marx. Não conseguiu: entretanto saltou-lhe uma loucura ao caminho e teve de matar a mulher. Mas pelo menos percebeu que o edifício teórico não estava lá muito sólido. A minha falácia é mais fácil de denunciar).
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A senhora que se veio sentar na mesa à minha frente é obesa, fuma, grita imenso com um dos dois miúdos que traz, o mais novo que se lhe senta nos joelhos, ela continua a fumar, o miúdo põe-se a brincar com as coisas que estão na mesa, a senhora diz-lhe para não brincar com as coisas que estão na mesa. Compreende-se: o vírus transmite-se muito facilmente. Vá lá que tem a máscara ao queixo, pronta a ser posta no regulamentar sítio.
O puto (chama-se João, para quem estiver interessado) não pára de se mexer, a senhora não pára de gritar e eu pergunto-me por que raio não é esta doença fulminante? Entrar por aquelas goelas abaixo, calar a mulher, imobilizar o puto (poupando o mais velho, adorável).
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O jantar vai ser leve, o vinho Balanches, a cama cedo: uma vida ordenada é prólogo da felicidade. Só espero resistir aos impulsos assassinos (o calor é um poderoso aliado. Vou resistir).
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O café Guadiana encheu-se de pessoas e de moscas. Às oito encontro-ume aqui com o C., que me deu boleia para baixo. Faltam quinze minutos. A senhora obesa agora grita para um telefone, o puto parou, as moscas não, o mais velho fala continuamente com a mãe que não o ouve sequer e menos ainda responde e eu pergunto-me se não será hora de ir ao supermercado.
É.
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Não era. Está fechado. Amanhã, pequeno-almoço no Estaminé. A senhora gorda foi-se embora, as moscas multiplicaram-se por um factor dez e a mesa à frente foi ocupada por duas senhoras francesas. Está definitivamente na hora de me ir embora.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.