26.7.20

Dispersas do dia - Mértola, 27-07-2020

É raro ouvir música em Mértola. Uma das coisas que me seduz nesta vila é o silêncio. Já aqui muitas vezes falei dele, um silêncio sólido como uma barra de sabão de Marselha, que é preciso cortar à faca: ou como um olhar inteligente numa mulher bonita, que nos seduz antes de se deixar seduzir.

Hoje infringi esta regra. Infringi todas as regras: bebo vinho branco (Balanches, este homem foi tocado pela graça divina) em vez de medronho, oiço música em vez de ouvir silêncio e não faço nada em vez de não fazer nada.

Enfim, não faço nada é um manifesto exagero. Maravilhar-se é fazer alguma coisa, não é? Ser feito alguma coisa. Fazer qualquer coisa daquilo que se é, se vê, se pensa que se é... As concatenações são infinitas. Entro no silêncio, abato-o, substituo-o - por música árabe - e vejo que os elefantes continuam com o rabo virado para a porta. A senhora que eficaz e gentilmente me limpa a casa quando não estou reteve esta regra: os elefantes devem ter o rabo virado para a entrada da casa. Não é de modo algum consensual, mas eu gosto dela e por enquanto fica assim. Talvez mude qualquer dia, quando me fartar de ver os rabos dos elefantes e começar a acreditar noutra superstição qualquer. É preciso mudar de superstições regularmente, como toda a gente. Não tarda ponho máscaras nos proboscídeos, coitados. Tenho dois: um de pau-preto com a tromba para cima, outro de uma madeira que desconheço, com a tromba para baixo. Estão os dois de rabo virado para a porta.

Não tarda um terremoto ocorrerá em Mértola: os meus elefantes.

Ou o Balanches branco mas não quero falar muito nisto. Um cavalheiro não revela os segredos que acabam de lhe ser confiados.

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«Desta forma se verifica que tanto os principiantes como os discípulos mais adiantados só poderão meditar como convém se primeiro lerem ou escutarem; e só poderão orar como convém se primeiro meditarem.»

(in «A nuvem do não-saber», anónimo inglês, séc. XIV)

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«Silêncio de cortar à faca» é uma expressão ambígua. Em Mértola tem de se cortar o silêncio com uma faca para se poder avançar nas ruas, exactamente como na selva os exploradores cortam as lianas para progredir. É bom, contrariamente ao que a expressão idiomática sugere.

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Vou à janela e confirmo que a música está demasiados alta, o copo de vinho quase no fim, a temperatura mais baixa (está nos 27). Ajo sobre aquilo que posso: a música e o vinho. O resto aceito.  Verdade seja dita, não há muitas alternativas, pois não?

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Não sei se já repararam, mas um corpo feminino é um prodígio, uma dádiva, um sólido argumento em favor das ideologias teleológicas. Não as partilho, de todo - acredito mais no acaso do que na necessidade - mas gosto de tudo o que me faz vacilar, o que põe à prova as minhas convicções.

Quando esse corpo tem uma cabeça por cima, as coisas não mudam de figura. Mudam de grau, de patamar, de galáxia. Uma indecência, é o que é.

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«Ninguém vem para o Alentejo comer pouco», diz-me a senhora do restaurante. Corrijo interiormente: «Ninguém vem para o Alentejo viver pouco.» (A garrafa de medronho está no congelador, não vá amanhã escapar-se-me o dia e ficar eu só com o medronho.)

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Página em branco perante mim, como aquelas pistas nas quais deslizam velozes patinadores, mão atrás das costas, curvados para melhor avançar. Sentado na cadeira, claro. O mínimo que se pode dizer é que não sou um repentista. 

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