12.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 12-10-2020

Hoje ao jantar bebemos a garrafa de Haut Marbuzet que o Th. e a A. me ofereceram há meia dúzia de meses. Um dia, uma amiga perguntou-me «Como curas as tuas depressões?» «Farto-me delas», respondi. Desta vez seria mais correcto dizer que me farto de não fazer nada, ou de não fazer o suficiente, como há mais de uma semana não faço. Só lamento não poder celebrar  sempre a partida da cadela negra com este vinho, mas enfim. Não se pode ter tudo. «Pode ter-se muito», não me canso de repetir-me. «Mas não se pode ter tudo. Contenta-te com o muito, por muito que te pareça pouco ou nada.» 

Esta luta com a cadela não terá fim, eu sei. Tem intervalos, pausas mais ou menos longas, desvios. Mas fim não terá. Pelo menos aprendi a viver com ela, vá lá. É como se a tivesse amestrado, cadela bem educada, au pied e ela vem, à ta place e vai-se embora. Deliro: não sou eu quem a chama. Nunca chamei. Que se lixe a malvada da bicha. Amanhã desata-me as mãos e as ideias, vai passear para outras paragens, urinar outras relvas. Deixa de ser ela a passear-me, ou imobilizar como se quem precisasse de fazer xixi fosse eu e não ela.

Estou em Genebra como no meio do Atlântico, ou sozinho numa alpage, com um diferença: aqui tenho o passado mobilado. Um bocado desorganizado, é certo, mas mobilado. Tenho de arranjar tempo para pôr isto tudo em ordem. Uns anitos chegarão, de certeza.

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Não vejo os «miúdos» todos os dias, mas pelo menos estou perto deles. Não-ver de perto é melhor do que não-ver de longe. Curioso que tenha precisado de uma vida para perceber esta verdade tão simples, não é?

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Tenho dois peitos de frango a assar no forno a cem graus. Calculo que quando a garrafa acabar  estejam prontos. Receita mais ou menos inspirada numa coisa que vi no NYT e não reli. Retive o açúcar castanho, os orégãos e a paprika. Já estava a marinar em sumo de limão, alho, sal e sálvia. Espero que isto tudo resulte equilibrado. Os contrários encontram-se, etc. Vem no Livro dos Desencontros, que um dia escreverei. Quando me encontrar?

[Enganei-me: a garrafa acabou e o frango não dá sinais de vida.]

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Os meus dias começam todos com o P. Nunca são bons começos, mas apesar disso estou-lhe grato: antes maus começos do que nenhum.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.