Saio de casa «cedo» (aspas porque oito e meia é tudo menos cedo). O dia está lindo, azul menos claro, azul a meio caminho do escuro. A temperatura é de nove graus, estimulante, eléctrica. Consigo andar a um passo quase normal. Ainda não é o passo estugado do costume, mas é suficientemente rápido para me deixar pensar que a tendinite acabou. Vou para a outra margem do Ródano: um passeio de vinte, vinte e cinco minutos durante o qual revejo ruas que me são bastante familiares (de resto tenho-as visto ultimamente, andei para aquelas bandas). O fecho éclair do passado e do presente abre e fecha-se, levado pela mão da memória. São as zonas ricas da cidade, as ruas das Prada, dos Boss, dessas marcas que tão pouco ou nada me dizem. A moda infantil deve estar virada para vestir as crianças como se fossem adultos em miniatura. É abominável. Todas as modas o são, de resto. Só o mau gosto - ou a sua ausência - precisa da bengala da uniformidade. O bom gosto não muda, ou então muda devagar, quase imperceptivelmente.
Ontem entrou em vigor a norma das máscaras na rua, mas poucas são as pessoas que as usam.
À tarde, outro passeio: fui buscar a cadela ao «cabeleireiro» canino. Esta antropomorfização dos animais repugna-me, mas pouco há a fazer. Fica para o outro lado da cidade, mais popular. São duas da tarde, a temperatura está «acima da média da estação», como dizia ontem o senhor da meteorologia na televisão. Fico contente: não é todos os dias que o aquecimento global está onde eu estou. Infelizmente, fica pouco tempo: para a semana voltam as temperaturas da época e a chuva.
Estou no fundo de um poço fundo, mas por milagre a luz chega até onde estou. Por quanto tempo? Este aquecimento local e interno acabará em breve, eu sei. Iremos para outras bandas mais obscuras, a maré baixa e eu. Que se lixe. Há que aproveitar, como vamos aproveitar este fim-de-semana, como aproveitamos estes momentos. Não se pode adiar o presente nem antecipar o futuro nem reviver o passado, mas pode-se fazer pontes entre eles, por breves, frágeis e incertas que sejam.
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Foi a vez de o namorado da H. ficar doente. Ao contrário dela, tem os sintomas todos, está mal, cheio de tosse e de dores de cabeça. «É um homem«, explica-nos a jovem com um encolher de ombros (implícito, ao telefone não se vê).
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Amanhã é dia de mais um passeio ao Jura. O maldito poço tem mesmo muita luz, desta vez.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.