2.10.20

Gazeta Rural - Genebra, cidade do Sul

 O meu texto para a Gazeta Rural nº 371:


GENEBRA, CIDADE DO SUL

 Genebra aparece regularmente no topo das listas das melhores cidades do mundo para se viver. Não é difícil ver porquê: tem todas as vantagens de uma cidade pequena e todas as vantagens de uma grande, sem as respectivas desvantagens. O Cantão de Genebra conta cerca de meio milhão de habitantes, dos quais duzentos mil vivem na cidade propriamente dita. Desses quinhentos mil, quarenta por cento são estrangeiros – se bem um quarto do total de estrangeiros tenha nascido na Suíça: como é fácil e pouco penalizador ser estrangeiro, muitos não se dão ao trabalho de se naturalizar, um processo longo, penoso e caro. Em 2004 a naturalização automática de estrangeiros de terceira geração foi referendada e recusada. Em 2016, uma naturalização «facilitada» (aspas porque cito) foi aprovada, mas teve posteriormente pouca adesão.

As ruas de Genebra são limpas – tão limpas que parecem escovadas, mais do que varridas – e seguras; têm uma invejável variedade de lojas, restaurantes, serviços diversos; ouvem-se poucas buzinadelas – se bem haja algumas. Os carros não deviam ter buzinas, é a única forma de as evitar -, há ciclovias de uma largura desmesurada (algumas por causa da Covid-19...), os semáforos estão feitos para os peões. Os autocarros e eléctricos têm um horário afixado em cada paragem e por inacreditável que pareça respeitam-no (com mais ou menos dois minutos de tolerância). Isto deve-se a duas coisas: a) a quantidade de faixas Bus e b) os respectivos condutores poderem alterar os semáforos para verde quando se aproximam deles. Não é frequente ver um transporte colectivo parado num sinal de trânsito por causa disso – e geralmente quando se vê é porque há outro no cruzamento que carregou primeiro no botão. A maioria das linhas intra-urbanas tem uma cadência de oito a dez minutos, mas essa cadência aumenta para quatro minutos para algumas delas à hora de ponta e cinco durante o dia – e isto, relembremo-lo, com horários respeitados. Acresce que os transportes são confortáveis porque as ruas estão bem pavimentadas (se não estiverem cheios, o que é frequentemente o caso, pelo menos às horas de maior ocupação). As bicicletas são inúmeras, de todas as formas e feitios: eléctricas, de carga, com reboques ou avanços para crianças, caras, baratas, de corrida ou de cidade. Os automobilistas ralham com a largura das ciclovias, «sempre vazias» segundo eles (não é inteiramente verdade, mas tão pouco é falso. As bicicletas circulam por todo o lado). Os engarrafamentos são gigantescos – provocados não só pelas ciclovias mas também pelas sempiternas obras. Cheguei a Genebra pela primeira vez em 82 ou 83 e desde aí não me lembro de ter visto a cidade um dia – um que fosse – sem obras. Ele é canos, ele é aumentar as linhas de eléctrico – quando cheguei havia uma, hoje há cinco – ele é melhorar os passeios para lhe aumentar a segurança, modificar as ruas para tornar impossível a circulação a mais de trinta km/h... A lista de trabalhos não pára, mas os genebrinos reclamam e continuam. A verdade é que tudo está à distância de um voto e quando o assunto é verdadeiramente sério as pessoas recorrem a ele. Como por exemplo aquando da renovação da Place du Marché, em Carouge (uma freguesia de Genebra): a autarquia resolveu abater os plátanos da praça, que segundo ela estavam doentes e substituí-los por outros. A população da comuna disse que não, montou uma iniciativa popular e a coisa esteve em discussão, análises, contra-análises durante quase um ano. Findo o qual foi a votação. As autoridades ganharam – puderam abater os plátanos – mas foi meia vitória: o seu projecto inicial teve de ser alterado. Ganharam todos... (Isto passou-se em 2000. Treze anos depois, os novos plátanos estavam atacados por um fungo e tinham de ser abatidos, mas dessa vez não segui o episódio.)

Para mim, o sistema político suíço é o melhor do mundo pela razão simples de que os políticos não têm poder. Quem manda é «o soberano». Há dois tipos de mecanismo de consulta: a iniciativa popular e o referendo. Este aplica-se a propostas do governo; aquela a... bem, iniciativas populares, que podem ser ou partidárias (organizadas por um partido) ou ad hoc  (um grupo de cidadãos independente de partidos faz uma proposta de lei, junta-se, lança uma recolha de assinaturas e normalmente dois anos depois o tema vai a votação, se conseguirem as assinaturas, que variam em função da amplitude da iniciativa. Se a iniciativa for cantonal ou comunal é mais rápido, naturalmente). Alguns temas são de referendo obrigatório, como os impostos, por exemplo. Os governos não podem criar ou aumentar impostos sem perguntar ao povo se concorda, o que tem a vantagem acrescida de os obrigar a explicar muito bem explicadinho para que vai servir o dinheiro (e quando o motivo do imposto acaba este é directamente retirado). Ou os que exigem uma alteração da constituição, como a naturalização automática ou facilitada. É um sistema complexo e não exportável, porque a Suíça são vinte e três países com fiscalidades, leis, escolaridades, polícias, administrações diferentes; cada um desses países está, por sua vez, dividido em comunas que têm autonomia em vastas áreas da administração da administração pública. (Não mencionando as divisões linguísticas: há quatro línguas oficiais, das quais uma – o romanche – é pouco utilizada.)

Nunca consegui viver em Genebra, mas sempre gostei de cá voltar. As primeiras semanas aqui, quando regressava de uma viagem ou de uma estadia fora (normalmente África, América Latina ou Portugal) reconciliavam-me com a humanidade. Depois, chegava o aborrecimento, a previsibilidade, a rigidez (um supermercado fecha às 19h00, não fecha às 19h01), a eficácia da administração – tem coisas boas e coisas más... Era demasiado jovem: é preciso envelhecer para se gostar verdadeiramente da Suíça. Genebra, sendo a menos suíça das cidades, aceita velhos um pouco menos velhos, como eu.

Curiosamente, para os suíço-alemães Genebra é uma cidade «do sul» – todos somos sempre o sul ou o norte de alguém – desorganizada e estranha, socialista e sensual. Têm razão: Genebra está ligada ao Mediterrâneo pelo Ródano e mesmo que não seja inteiramente navegável o Mediterrâneo chega aqui. Ou pelo menos eflúvios. Há nesta cidade, para nós tão organizada, rígida, inflexível, ilhotas de vida, de alegria, de caos. Basta escavar um bocadinho (ou ir a Carouge, enclave católico no meio do calvinismo, que já pertenceu ao reino da Sardenha, oásis de paz, tolerância e boémia. Mas isso fica para depois).

 

Luís Serpa, Genebra, 28/08/2020

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