O meu texto para a Gazeta Rural nº 371:
GENEBRA, CIDADE DO SUL
As
ruas de Genebra são limpas – tão limpas que parecem escovadas, mais do que
varridas – e seguras; têm uma invejável variedade de lojas, restaurantes,
serviços diversos; ouvem-se poucas buzinadelas – se bem haja algumas. Os carros
não deviam ter buzinas, é a única forma de as evitar -, há ciclovias de uma
largura desmesurada (algumas por causa da Covid-19...), os semáforos estão
feitos para os peões. Os autocarros e eléctricos têm um horário afixado em cada
paragem e por inacreditável que pareça respeitam-no (com mais ou menos dois
minutos de tolerância). Isto deve-se a duas coisas: a) a quantidade de faixas
Bus e b) os respectivos condutores poderem alterar os semáforos para verde
quando se aproximam deles. Não é frequente ver um transporte colectivo parado
num sinal de trânsito por causa disso – e geralmente quando se vê é porque há
outro no cruzamento que carregou primeiro no botão. A maioria das linhas
intra-urbanas tem uma cadência de oito a dez minutos, mas essa cadência aumenta
para quatro minutos para algumas delas à hora de ponta e cinco durante o dia –
e isto, relembremo-lo, com horários respeitados. Acresce que os transportes são
confortáveis porque as ruas estão bem pavimentadas (se não estiverem cheios, o
que é frequentemente o caso, pelo menos às horas de maior ocupação). As
bicicletas são inúmeras, de todas as formas e feitios: eléctricas, de carga,
com reboques ou avanços para crianças, caras, baratas, de corrida ou de cidade.
Os automobilistas ralham com a largura das ciclovias, «sempre vazias» segundo
eles (não é inteiramente verdade, mas tão pouco é falso. As bicicletas circulam
por todo o lado). Os engarrafamentos são gigantescos – provocados não só pelas
ciclovias mas também pelas sempiternas obras. Cheguei a Genebra pela primeira
vez em 82 ou 83 e desde aí não me lembro de ter visto a cidade um dia – um que
fosse – sem obras. Ele é canos, ele é aumentar as linhas de eléctrico – quando
cheguei havia uma, hoje há cinco – ele é melhorar os passeios para lhe aumentar
a segurança, modificar as ruas para tornar impossível a circulação a mais de
trinta km/h... A lista de trabalhos não pára, mas os genebrinos reclamam e
continuam. A verdade é que tudo está à distância de um voto e quando o assunto
é verdadeiramente sério as pessoas recorrem a ele. Como por exemplo aquando da
renovação da Place du Marché, em Carouge (uma freguesia de Genebra): a
autarquia resolveu abater os plátanos da praça, que segundo ela estavam doentes
e substituí-los por outros. A população da comuna disse que não, montou uma
iniciativa popular e a coisa esteve em discussão, análises, contra-análises
durante quase um ano. Findo o qual foi a votação. As autoridades ganharam –
puderam abater os plátanos – mas foi meia vitória: o seu projecto inicial teve
de ser alterado. Ganharam todos... (Isto passou-se em 2000. Treze anos depois,
os novos plátanos estavam atacados por um fungo e tinham de ser abatidos, mas
dessa vez não segui o episódio.)
Para
mim, o sistema político suíço é o melhor do mundo pela razão simples de que os
políticos não têm poder. Quem manda é «o soberano». Há dois tipos de mecanismo
de consulta: a iniciativa popular e o referendo. Este aplica-se a propostas do
governo; aquela a... bem, iniciativas populares, que podem ser ou partidárias
(organizadas por um partido) ou ad hoc
(um grupo de cidadãos independente de partidos faz uma proposta de lei,
junta-se, lança uma recolha de assinaturas e normalmente dois anos depois o
tema vai a votação, se conseguirem as assinaturas, que variam em função da
amplitude da iniciativa. Se a iniciativa for cantonal ou comunal é mais rápido,
naturalmente). Alguns temas são de referendo obrigatório, como os impostos, por
exemplo. Os governos não podem criar ou aumentar impostos sem perguntar ao povo
se concorda, o que tem a vantagem acrescida de os obrigar a explicar muito bem
explicadinho para que vai servir o dinheiro (e quando o motivo do imposto acaba
este é directamente retirado). Ou os que exigem uma alteração da constituição,
como a naturalização automática ou facilitada. É um sistema complexo e não
exportável, porque a Suíça são vinte e três países com fiscalidades, leis,
escolaridades, polícias, administrações diferentes; cada um desses países está,
por sua vez, dividido em comunas que têm autonomia em vastas áreas da
administração da administração pública. (Não mencionando as divisões
linguísticas: há quatro línguas oficiais, das quais uma – o romanche – é pouco
utilizada.)
Nunca
consegui viver em Genebra, mas sempre gostei de cá voltar. As primeiras semanas
aqui, quando regressava de uma viagem ou de uma estadia fora (normalmente
África, América Latina ou Portugal) reconciliavam-me com a humanidade. Depois,
chegava o aborrecimento, a previsibilidade, a rigidez (um supermercado fecha às
19h00, não fecha às 19h01), a eficácia da administração – tem coisas boas e
coisas más... Era demasiado jovem: é preciso envelhecer para se gostar
verdadeiramente da Suíça. Genebra, sendo a menos suíça das cidades, aceita
velhos um pouco menos velhos, como eu.
Curiosamente,
para os suíço-alemães Genebra é uma cidade «do sul» – todos somos sempre o sul ou
o norte de alguém – desorganizada e estranha, socialista e sensual. Têm razão:
Genebra está ligada ao Mediterrâneo pelo Ródano e mesmo que não seja
inteiramente navegável o Mediterrâneo chega aqui. Ou pelo menos eflúvios. Há
nesta cidade, para nós tão organizada, rígida, inflexível, ilhotas de vida, de
alegria, de caos. Basta escavar um bocadinho (ou ir a Carouge, enclave católico
no meio do calvinismo, que já pertenceu ao reino da Sardenha, oásis de paz,
tolerância e boémia. Mas isso fica para depois).
Luís Serpa, Genebra, 28/08/2020
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.