2.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 02-10-2020

Chove. Uma chuva suíça, compromisso entre chover e não chover. Saio de L'Ivresse para ir comprar L'Art de la Joie, de Goliarda Sapienza, à Atmosphère.

Calvin andou por estas ruas, mas ao contrário do que geralmente se pensa, não se deu bem com elas. Isto é, não se deu muito bem com Genebra, ou Genebra com ele. O catolicismo não se rendeu sem luta e o calvinismo desapareceu pouco depois da sua morte.

Não desapareceu. Genebra é uma cidade de coabitação. Não é como Palma, onde as três cidades coabitam mas não se tocam. Aqui há muito mais do que três cidades, para começar: a dos genebrinos, a dos estrangeiros ricos (expatriados), a dos estrangeiros pobres (imigrantes), a dos funcionários internacionais, a dos estrangeiros de passagem, a dos "frontaliers" e a dos estrangeiros ricos que não são expatriados. Talvez refugiados fiscais, ou refugiados financeiros: fazem um acordo com o fisco e estabelecem a sua base aqui. Alguns preferem Zurique, mas muitos ficam em Genebra ou no cantão de Vaud, cujo fisco é mais favorável.

Todas estas Genebras interagem, mais ou menos. O elo de ligação, comum a todos, são os estrangeiros pobres. Limpam casas, trabalham nas obras, servem os copos e os pratos nos cafés e restaurantes. Os funcionários internacionais - ONU, ONG, diplomatas - têm sítios mais ou menos designados, mas são frequentemente vistos na cidade: lojas, livrarias, restaurantes. Os outros todos fazem as suas vidas, cruzam-se, cumprimentam-se na ópera ou no teatro, num ou outro restaurante... Tudo isto gira como uma engrenagem bem oleada. Em Palma, as camadas estão estratificadas. Aqui não. São oleosas, como aqueles brinquedos quando éramos crianças, tinham dois líquidos de cores diferentes que se adaptavam um ao outro quando agitávamos o recipiente mas nunca se misturavam. Aqui há mais cores e mais interacções, mas as misturas são iguais: zero.

É preciso dizer, contudo, que só não se mistura quem não quer. Fui bastante bem recebido porque nunca me refugiei em nenhuma categoria. Dei-me com a alta burguesia genebrina - para quem até fiz pastéis de bacalhau (que só foram aceites depois de lhes mudar a designação para pastéis de peixe) - com artistas (alguns dos quais até verdadeiros), com funcionários internacionais, universitários, com imigrantes, okupas, com todos e mais alguns. 

Hoje, fechado no meu poço de maré baixa, penso nos amigos que vou rever quando isto passar. E penso, sobretudo, no esforço que fiz para não ser daqui, para estar de passagem.

Há lutas estúpidas, não há? Há, mas não foi o meu caso. Não tive de lutar nada: aconteceu, simplesmente porque não poderia ter sido de outra forma. Não sou mais daqui do que de outro lado qualquer. O que me prende a Genebra são os meus filhos e a minha ex-mulher (e presente amiga).

Não são estas ruas, de que agora admiro a sobriedade, mesmo quando são imponentes, a suavidade, a fluidez. Nem mesmo a França vizinha, onde vou quando preciso de ir à fonte, à desordem.

Nada me prende a lado nenhum, para além deles. Espero que nunca saiam de Genebra. 

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