15.10.20

GENEBRA NO OUTONO - Gazeta Rural nº 372

    Genebra outonal está como sempre esteve e estará pela próxima centena de anos: chuvosa e branca, não de neve mas porque a luz aqui é cinzenta e acinzenta tudo o que ilumina. Escapam as árvores que mudam de cor e passam dos verdes para todos os tons na faixa dos encarnados e alguns parques, cujo verde beneficia com a chuva. O resto é cinzento. 
    Superficial, verdade seja dita. A Suíça em geral e Genebra em particular fazem-me lembrar aquelas pessoas pudicas, castas, tímidas em público e que na intimidade se revelam outras. O problema na Confederação é encontrar-lhe a intimidade. Os suíços são hospitaleiros, recebem bem os estrangeiros – as iniciativas xenófobas perdem mais vezes do que ganham, não há país que eu conheça onde seja mais fácil ser estrangeiro – mas só até certo ponto. A partir do qual é preciso querer, escarafunchar, procurar. Uma vez lá chegados, encontra-se um mundo fervilhante, aberto, curioso e – não despiciendo - com dinheiro para o ser. 
    Cheguei a Genebra em 1983. Inscrevi-me numa associação que disponibilizava equipamento vídeo, actividade a que me dediquei quase seis meses. Deu-me poucos e irregulares proveitos, diverti-me bastante, fiz um vídeo policial – péssimo, mas o argumento defendia-se; fui trabalhar para um café «diferente» (as aspas servem para explicar que não sei explicar o que é «diferente», apesar de ser capaz de o descrever.) Foi nesse café (o Marchand de Sable, que ainda existe mas deixou de ser «diferente») e nessa associação de vídeo – o Videographe de Genève – que comecei a ver Genebra por dentro. Já conhecia parte da Suíça: passara dois anos em La Chaux-de-Fonds - uma cidade da indústria relojoeira que atravessava uma profunda crise devido ao quartzo dos japoneses - e seis meses em Zurique. Mas durante esses tempo todo estava de passagem, por assim dizer; à superfície: entre 1979 ( o ano da minha chegada a la Tchaux, como é conhecida) e 1983 (quando cheguei a Genebra) vivi um ano em Aveiro, fiz uma viagem de ida e volta a Moçambique num navio da marinha mercante, passei uns largos meses em Atenas e ia frequentemente (mês sim mês não) a Itália, onde passava o tempo necessário para gastar o dinheiro que tinha ganho no mês anterior. Ausentava-me para fazer regatas ou transportes, vivi uns meses em Dunquerque... Acabava sempre por regressar à Suíça, mas o que me fazia regressar não era nenhum sentimento especial pelo país – era o facto singelo de ali ter sempre trabalho, fosse ele qual fosse. Trabalhei numa quinta, limpei neve dos telhados, fiz limpezas, lavei pratos, trabalhei num albergue de juventude (hoje seria um hostel), mudei casas – enfim, o recheio – e convivi um pouco com essa Suíça subterrânea, a Suíça dos marginais, dos alternativos, dos «artistas» em potência. 
    Mas foi em Genebra – e no amor que ali encontrei e me levou ao casamento e à paternidade – que comecei real e seriamente a perceber a Suíça. Um país mais pequeno do que Portugal dividido em vinte e seis países com governos, polícias, sistemas fiscais, quadros jurídicos, sistemas escolares diferentes; um país onde quatro vezes por ano há votações, seja para referendar as propostas dos diferentes governos, seja para fazer aprovar iniciativas populares; um país, enfim, onde quatro línguas (em teoria. Na prática são três) coabitam e se entendem melhor do que em muitos outros mono-idiomáticos. É preciso imaginar a Suíça como um quadro inflexível e rígido dentro do qual há enorme liberdade. Para quem, como eu, vive de e para a liberdade pode parecer estranho, inicialmente. Depois torna-se atraente. Basta envelhecer. 
    Mas voltemos a Genebra, cidade calvinista com um bairro católico (ou freguesia, para os mais picuinhas), cidade de camadas como um mil folhas, dos restaurantes de todo o mundo... Isso é por causa das «Organizações», como são colectivamente designadas a ONU, respectivos apêndices, ONG e tudo o que lhes gira em torno. Feche-se os olhos e aponte-se ao acaso para um mapa-mundo. Ponha-se de parte o facto irrefutável de que se tem mais probabilidades de cair no oceano do que num continente. Pois bem: se o dedo cair em terra, há muitas probabilidades de Genebra ter um restaurante do país no qual o dedo aterrou. E quem diz restaurantes diz mercearias, cabeleireiros, igrejas ou cafés. Portugueses então nem se fala: somos o maior grupo de imigrantes, com aproximadamente quarenta mil pessoas, vinte por cento dos estrangeiros. Uma viagem de autocarro ou eléctrico nesta cidade é uma espécie de volta ao mundo linguística. Quando cá vivia, gostava de experimentar restaurantes desses países menos conhecidos: Etiópia – por cuja cozinha  viria mais tarde a apaixonar-me, no Burundi, porque havia um grupo de Etíopes que trabalhava para nós como condutores e me convidava para as suas festas – Coreia e por aí fora. Hoje sinto menos a falta dessas expedições culinárias, mas continuo a gostar destas ruas babelianas, da sobriedade da arquitectura, do desinteresse polido que marca as interacções pessoais. 
    E da oferta cultural, da quantidade de livrarias, da música das Rues Basses ou dos cafés de Carouge, de ir passear nas margens do lago, da suavidade dos eléctricos, da pontualidade e da riqueza dos transportes públicos... Genebra é uma cidade arrumada (apesar de ser provavelmente a mais «desarrumada» da Suíça, a mais «mediterrânica»). Quando se chega a esta cidade gosta-se dela por umas razões e anos mais tarde o que nos seduz são outras, completamente diferentes mas mais profundas, mais verdadeiras. Não é uma cidade de sentidos, é uma cidade de razão. Não é de paixões, é de amor. 

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