16.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 16/12/2020

Hoje fui «jantar fora» e lembrei-me de quando a notícia era «hoje fui jantar dentro». Andava a morrer por uma tasca daquelas com vinho carrascão, mas dessas há cada vez menos. Contentam-se com vinho mau e uma televisão gigante. No Compadre o vinho é bom - enfim, aceitável - a TV gigante, a aguardente boa e não resistem muito à ausência de máscara - critério novo mas importante. Mais vale esquecer o vinho carrascão, já não há. Agora, se quiser pintar os lábos de roxo terei de comprar bâton. Felizmente, tenho uma belíssima quantidade de aguardente em casa - não há sede que não dê em excesso - e o canal Mezzo funciona. Os lábios ficam claros, mas a noite compõe-se. Com conta, peso e medida, claro. Acordei era meio-dia - gostava de me lembrar da última vez que isso aconteceu, mas a minha memória não anda muito para trás, pára nos sessenta anos ou assim. (Exagero? Exagerar é preciso.) Amanhã volto ao normal. Penso numa quantidade de coisas - todas ao mesmo tempo - e decido que um pântano é um pântano. Tentar desfiar-lhe os cheiros não passa de um «voto piedoso». Deixemo-los estar como estão. De um pântano ou te salvas ou nele morres, não há meio-termo. Ninguém sobrevive no fedor, excepto se gostar, claro. Eu não gosto, aqui fica dito e reiterado. Gosto de cheiros limpos. Um pântano serve para dele sair ou para nele me afundar, ponto.

Não posso é dizer que estou sozinho. Não estou, Allahu Akbar, Hallelujah, Graças a Deus. Não há pântano que não tenha fundo nem pé que não chegue lá. Como o casco de uma embarcação, dividido em «obras vivas» e «obras mortas». Estou sozinho numas e acompanhado nas outras. É sempre assim, não é? Tudo é feito em partes. Como nas pinturas do Tiago Taron ou nos filmes do Godard: aos bocados. Às peças. Fragmentado. O pântano que desespere, não eu. Morrer sim, desesperar nem pensar nisso. Morra Marta, morra farta, mas não triste.

Andam abutres por aí? Tanta morte cheira mal. 

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Lisboa continua a mistura do que foi, é e será. Esta cidade não se resolve no tempo, abençoada seja.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.