23.12.20

Diário de Bordos - Lisboa, 24-12-2020

Dióspiro é fruta fugidia, fogo de Zeus, fruto dos deuses, fruto para todas as horas. Há melhor coisa de se comer à uma da manhã, hora de cama para os senhores do Olimpo, hora de saída para a galdéria da insónia? Não, não há. (Aproveita-se e fico a saber porque fazia uma enorme confusão entre kaki e dióspiro: são a mesma coisa. Passa-se de fogo e deuses para calças e calções num abrir e fechar de olhos.)

Ou seja: começo bem o dia de Natal. Vou jantar a casa da M., que teve a simpatia de me convidar. Verdade seja dita que o convite tem 99,98% de amizade e 0,02% de simpatia (Não!, não estou obcecado com a Covid!) O que não retira valor nem a uma nem a outra, claro. Amanhã o almoço será em casa da T. Isto é que vai ser um Natal! 

Agora só falta que o pai do dito pense no P. e me ponha uma viagem para Palma no sapato. (Não disse que dióspiro era fruta fugidia? Começou na cozinha aqui ao lado e acaba em Maiorca. "Não há machado que corte / a raiz ao pensamento"...)

E ao tempo? Ao tempo sim: decidi que os degraus vão ser baixinhos e subidos um a um. O primeiro vai ser tratar da vista. Voltar a ver normalmente parece-me um objectivo legítimo. Meio surdo e meio cego é forma errada de entrar na terceira idade, que está aí tão perto. A seguir virá outro e depois outro e depois por aí acima até sair do buraco. Sempre fui o meu melhor antidepressivo e ainda não passei do prazo. O princípio activo está cá e bem activo, seja Deus louvado e agraciado.

Se um dia aprendesse a cantar sem assustar quem me ouve, a minha primeira canção seria um lauda. A seguir, um Deo gratias (sou ateu, mas não tenho repugnância nenhuma pela palavra Deus). Depois, viriam as outras todas, ao molhe. Até acabar com o Leonard a cantar Hallelujah, Avalanche, Anthem, Dance me to the end of love e eu a ouvir enquanto construía altares: para as mulheres que amei, para as que não amei, para as que me deixaram e - finalmente, o maior de todos - para as que amei, deixei e ainda amo. Broken hallelujah, Leonard, if it be your will (that I speak no more... If it be your will to let me sing). Hey, that's no way to say goodbye. Não há boas maneiras de dizer adeus, Leonard. Com a admitida excepção daqueles que se transfomam em olá, ou nunca deixaram de o ser. Olá, adeus, olá... Há antónimos que parecem tranças ou irmãos gémeos.

A noite avança, a galdéria vai para a cama com tudo o que lhe aparece pela frente. Agora está com o Cohen, não tarda será o gajo dos Magnetic Field, também percebe de amores e das diferentes formas de riso que exigem. Não sei. Ela que faça o que quiser.

Charlotte Gainsbourg, L'un part, l'autre reste.

Vá, estúpida, deixa-te de pieguices. Vai para a cozinha.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.