14.1.21

Ainda

"Já fui muito infeliz. Mais infeliz do que tudo o que tu possas imaginar. Tão infeliz que não sabia sequer que a felicidade existia. Não era como se a tivesse esquecido, era mesmo não saber, nunca ter sabido. Só mais tarde, anos e anos depois, descobri que a felicidade é real e não qualquer coisa de que se ouve falar ou se lê nos livros - mas não por conhecimento directo, não por a ter experimentado. Isso só veio depois. Muito, muito depois. Para mim, experimentar directamente a felicidade foi como renascer, como ver o Sol depois de um eclipse de séculos. Não me lembro de quando isso aconteceu, mas já ia muito avançado em direcção aos trinta. Até lá, a minha vida fora como aquelas intermináveis praias do mar do Norte, de areia cinzenta, céu cinzento, mar cinzento e mulheres muito brancas e finas, como pasta de dentes. Não ligava às mulheres. Isto é, ligava e muito, queria tê-las mas não queria fazer o que era necessário para as ter. Como quando queres beber um café mas não tens vontade do o fazer. Era infeliz e deixava-me arrastar pela infelicidade como um entrevado numa cadeira de rodas no hall de um hospital. A infelicidade era a minha casa. No Inverno fazia batalhas de bolas de neve, ski de fundo, bebia vinho quente e era infeliz. No Verão, passeava pelos bosques, bebia cerveja ou vinho branco e... adivinhaste. Ainda hoje me lembro desses dias com terror e espanto. Terror porque sei que podem voltar à cada instante. Espanto, porque não compreendo como lhes sobrevivi, como aguentei tanto tempo. uma vez tentei acabar com aquilo, mas não consegui e mal saí do hospital real voltei para o meu hospital metafórico, o da cadeira de rodas, tetraplégico dos sentimentos.

A felicidade caiu em mim de repente. Já ouvira falar dela, como te disse. Talvez até a tivesse vislumbrado, talvez lhe tivesse tocado de raspão. Um dia, porém, descobri que podia ser feliz, podia ser como todos os homens à minha volta, podia ser deus. Deus menor, sem dúvida, mas deus. Finalmente, a minha vida começara a obedecer-me. Não sei como explicar-te isto: de ser vivido passei a viver. De bola de bilhar passei a ser o taco. Imagina um cego que de repente começa a ver: aposto que a sua alegria, a sua felicidade, o seu espanto não seriam maiores do que os meus, quando  descobri que também a mim era dado ser feliz. Como se tivesse nascido já adulto. Ainda hoje não percebo como aquilo aconteceu, mas espero que não acabe, ainda."

O senhor pegou no gin tónico que pousara ao seu lado, deu-lhe um longo gole e continuou:

"Ainda é cedo."

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