Lisboa, 29/11/2020
Querida Vanessa,
A carta vai atrasada, eu sei. Desculpa. Isto tem andado complicado, por estas bandas. Poucas vontades e sem elas não há memória que me valha. Tenho aproveitado estes dias para me lembrar da Gaëlle , um miúda pequenina, loira, francesa de olhos azuis que conheci há tempos em Dunquerque, a cidade mais feia de França e a mais simpática de todas. Prova – como se fosse preciso provar – de que quem vê ruas e prédios não vê corações. Seduzi-la foi um processo longo e laborioso. Ela acabara de sair de um casamento horrível, com um alcoólico que lhe deixara um filho e um monte de dívidas e precisei de tempo e palavras em grande quantidade para, finalmente, um dia na praia lhe deitar a mão. Estávamos na Primavera, não havia ainda muita gente e eu, não sendo grande fã de sexo na praia – não gosto de areia em lado nenhum e muito menos nesses sítios – lá me abalancei.
A primeira vez nunca é a melhor. Isso é mito de meninas «livres» e meninos cheios de hormonas. Aquela vez na praia não fugiu à regra: foi rápido, com poucos preliminares e apenas chegou para nos dizer – aos dois – que devíamos insistir. A verdade é que o monte de palavras e tempo que gastara a seduzi-la me seduziram também a mim. Acontece muitas vezes, não é? Quantas vezes seduzir alguém serve simplesmente para nos seduzirmos a nós próprios?
Gaëlle morava no quinto andar de um prédio que
ficava ali mesmo ao lado e foi lá que continuámos. Era muito pequenina mas
forte e quando se vinha dizia-me «tu fodes-me como um deus» e tinha aquilo que
me parecia uma descarga eléctrica. Toda ela tremia, enquanto ia repetindo
«...como um deus. Como um deus» Eu acreditava, claro. Qual o homem que não
acredita? Ainda por cima, nessa altura sentia-me verdadeiramente um deus, era
um deus. Foder como um parecia-me a coisa mais natural do mundo.
Penso nela muitas vezes, ainda. Gostaria de saber
se encontrou um homem que a merecesse. Gaëlle tinha três empregos, um dos quais
consistia em vender livros pró-independência a grupos independentistas. Tinha
para isso uma carrinha Citroën, daquelas de chapa ondulada que se vêem
invariavelmente nos filmes franceses. Com ela, percorríamos a Flandres
francesa, a Normandia – como de costume, eu tinha um trabalho que me permitia
intermitências. Normalmente era eu quem guiava. Volta e meia ela pedia-me
«Pára, por favor.» Eu parava no primeiro sítio possível, ela saltava para cima
de mim, punha-me a pila dentro dela, já molhada e pronta. Imagino no que teria
vindo a pensar, para estar já naquele ponto. Chegava rapidamente ao orgasmo e
dava-me gozo fazê-la vir-se duas ou três vezes, duas ou três descargas, uma
quantidade infinita de «oh meu Deus» e «como um deus». Depois desencaixava-se
de mim, sentava-se no seu lugar e dizia-me »Desculpa, estava mesmo a precisar.»
Outras vezes, dizia-me: «Esta é só para ti.» e fazia-me um bico ali à beira da
estrada, aquele tufão loiro na minha cintura a mexer-se em todos os sentidos.
Ela sendo pequenina, eu arranjava forma de não «ser só para mim» e enfiava-lhe
um dedo na vagina, outro no cu até eles quase se tocarem lá dentro.
Nunca fui muito de acreditar nessas coisas do
«vir-se ao mesmo tempo» - prefiro dar a prioridade às senhoras, quando gosto
delas; ou não pensar muito nisso quando me são indiferentes – mas é verdade que
por vezes havia qualquer coisa de mágico naqueles orgasmos em que Gaëlle se
molhava de cima a baixo e vibrava como um mastro numa tempestade enquanto eu
esvaziava o meu nela.
Por causa do filho – teria meia dúzia de meses,
talvez um ano, não me recordo – habituara-se a não gritar durante o sexo e toda
aquela energia saía-lhe pelo corpo perfeito, musculado, seco e lindo. Um dia,
fomos com uns amigos dela beber umas cervejas a um bar, no campo. Não sei se
conheces a Flandres: uma região muito bonita, entrecortada por inúmeros canais,
com antigos moinhos reconvertidos em bares. A bebida ali é a cerveja, não o
vinho. Estaríamos talvez três ou quatro casais. A certa altura, sinto uma mão
nas coxas. Era uma das raparigas, amiga dela, que me dizia «A Gaëlle diz
maravilhas de ti. Gostava de experimentar. Posso?» Disse-lhe que sim – Gaëlle piscara-me o olho
pouco antes e agora percebia porquê. Estava entretido com a rapariga – uma
loira, claro, as flamengas são do norte, cabelos de cerveja e olhos de mar –
quando sinto uma pancada violenta no ombro. Era o homem dela. Não estava nada
contente com aquilo e arrancou-ma dos braços, pegou nela e foram-se embora. A
festa acabou ali, aquilo estragou um pouco o ambiente, como podes imaginar. No
caminho Gaëlle disse-me «Eu bem tentei aguentá-lo, mas não consegui. Anda,
faz-me a mim o que ela queria que lhe fizesses». Parou a carrinha, mas desta
vez fomos para trás, para o meio dos livros. É tão bom, um corpo levezinho em
cima de ti, não é? Deve ser daí que vem aquela expressão portuguesa da mulher e
da sardinha. O prazer concentra-se todo na ponta da pila e nos olhos. A
estúpida mania das conas rapadas ainda
não tinha chegado. Ver aquele tufo de pelos entre o amarelo e o castanho claro
mexer-se em mim parecia dar corpo ao gozo, uma sinestesia com sensações em vez
de vogais. «Era isto que querias fazer com a... (como lembrar-me do nome da
rapariga?) Era? Diz se eu não sou melhor? Diz!» Era. Acabei por foder a outra,
um dia em que nos encontrámos num bar os três – a Gaëlle , ela e eu. O homem ciumento tinha ficado em
casa, ou ela tinha-lhe passado um bilhete de desembarque, não sei. Comi-a na
rua, no recesso de um portão e não, não foi bom. Quando acabámos, disse-lhe
«temos de nos ver numa cama, isto é sítio para quem já se conhece» e voltámos
para dentro, onde Gaëlle me esperava com uma cerveja e um sorriso
trocista. «A primeira vez nunca é a melhor», disse para a amiga. Que
visivelmente não acreditou, porque nunca mais a vi.
Porque penso em Gaëlle agora, passados estes anos
todos? Porque me lembro de quando ela me pedia para pôr o concerto de Colónia
quando queria fazer amor – isto é, todos os dias, todas as horas? Porque me
lembro daqueles seios pequenos, rosados, onde se me entaramelavam os dedos, a
língua, o nariz, os olhos, às vezes a pila – pareciam um foguetão a caminho da
Lua, quando cresciam de repente...
Eu sei porquê: é por causa da Gaëlle e de todas as Gaëlle que me atravessaram os
dias e as noites, que magoei sem querer – e às vezes querendo, mas sempre
injustamente – que hoje sou quem sou. E não, Gaëlle, eu não fodia como um deus.
Nós fodíamos como deuses. Há coisas que só se fazem a dois e ir para o
céu é uma delas.
(Lisboa, 29/11/2020)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.