6.2.21

Diário de Bordos - Lisboa, 06-02-2021

Vim para casa ouvir Bartok. Só qualquer coisa com a qual entretenha sentimentos ambíguos e emoções duvidosas pode servir. A manifestação foi uma treta. Havia mais polícias do que manifestantes - o que por um lado é bom sinal - e durante os três quartos de hora que lá estive apanhei frio e ouvi o Grândola. Não sei qual é pior punição, mas suponho que seja a música. Gostaria muito que houvesse manifestações com milhares de pessoas, recolha de assinaturas, discursos inflamados, palavras de ordem. Eu, que sempre detestei manifestações... Fui a duas, em toda a minha vida: uma a 26 ou 27 de Abril, à frente do liceu Salazar, para perceber. Perguntei a um dos manifestantes o que se passava.

- Não sei. Acho que vem aí um novo governador.

Quatro ou cinco anos mais tarde, já em Lisboa, entrei na manifestação de um grupúsculo qualquer da esquerda revolucionária, talvez o MRPP, não sei. Comecei a «desafinar» as palavras de ordem e uma (ou um) jovem aconselharam-me a pôr-me dali para fora rapidamente. Sugestão que segui sem sombra de hesitação. A ideia era ver se eles ouviam o que lá se dizia, não ser um herói. Hoje não houve nada disso, não houve pingo de emoção: só frio, Zeca Afonso - um cantor por quem não nutro particular afeição - e Grândola Vila Morena, sem parar, até enjoar. Ainda por cima, nem sequer era cantada pelo tal Zeca. Porque falo nele? Porque a primeira hora dos Microcosmos é um seca, suponho. Não há maneira de conseguir achar o Zeca Afonso um génio e de qualquer forma vou deixar o Bartok para segundas núpcias, não tarda. Ou então oiço outra coisa qualquer, um dos concertos. Ou então não sei, não faço ideia, não quero fazer ideia, detesto fazer ideias. O tinto acabou e os monhés estão fechados. Quem enfiasse um tronco de sequóia pelo ânus de quem faz estas normas prestaria um garboso serviço à comunidade e não teria de se envergonhar pelo menos até à quinta geração.

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- Malta, acabou o vinho!
- Não faz mal, bebe-se branco.

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Amanhã faço caril de peixe. Aceito inscrições. Máximo seis pessoas (por causa das cadeiras, não do vírus), máscaras proibidas, pró-covides, apreciadores de Sérgio Godinho e miúdas com menos de cinquenta anos aceites (ninguém é perfeito). Não fiz convites porque há o risco de o caril ser demasiado picante para a maioria dos frágeis palatos da ocidental praia. É o «Scorpion» do Cristian, que ele vende como se fosse uma bomba atómica e ao qual tive de acrescentar meio quilo de malaguetas para sentir alguma coisa. A capsaícina é um excelente antidepressivo, se querem a minha opinião. Se não querem não faz mal, não me importo. Sou um rapazinho tolerante e doce.  Trazer, não tragam nada. Ou então, tragam cerveja, vai melhor com o caril. Não resisti e abri o sal de Cocó. Vou precisar de comprar mais um carregamento de especiarias ao argentino. (Excepto cominhos, encontrei uns extraordinários na rua do Arsenal. Ao nível dos de S. Luís do Maranhão, para que vejam.)

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Bar Tok é um nome giro para um bar, não é? Aposto que não há mais do que dois milhões no mundo. (Mesmo assim, fica longe de ZanziBar, de que há cinquenta milhões e a cada meia-hora abrem cinquenta mil.)

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Título de filme de suspense: «Portas abrem-se com um estrondo inaudível.» Serve para documentário, também. 

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Vá lá que o brancol é bastante decente. Comprei-o na mesma mercearia da rua do Arsenal, que hoje ganhou um cliente. A máscara está a provocar uma reviravolta completa dos meus fornecedores. Nesta, devo ter entrado duas vezes - se tanto - nos últimos quarenta e cinco anos. 

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Vivamente quinta-feira, por favor. Ver se vejo qualquer coisa, em todos os sentidos do verbo.

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A última meia hora dos Microcosmos é óptima. Não há melhor música para ilustrar um tumultuoso caos emocional do que Bartok (e Cecil Taylor, claro, seu descendente directo). E vinho tinto, que já não há.

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