6.2.21

Marieke, ou O nascimento do amor - I (Cont.)

 - Podemos começar pela cama? - Marieke era uma mulher decidida. Tinha acabado de lhe abrir a porta de minha casa. - Esta coisa das conversas prévias é uma chatice. Sonho com o tempo em que os homens nos pegavam pelos cabelos e nos levavam para a gruta. - Íamos para a cama, depois levantava-me para fazer o jantar (às vezes ela ajudava-me), comíamos e voltávamos para a cama. À meia-noite, uma da manhã ia-se embora. 

A cama era grande, dura e quente. Quando Marieke partia, não era do calor que notava a ausência. Não notava ausência nenhuma, na verdade: ia acompanhá-la à porta e mal a fechava adormecia, voltava para o quarto feito sonâmbulo. Às vezes, perguntava-me se fazia amor com Marieke ou a Marieke e quase sempre optava por esta última hipótese. 

Hoje, por exemplo, decidiu que queria ser sodomizada. Tinha vindo equipada com um tubo de um gel adequado, explicou-me o plano, espalhou a tal pomada pelo rabo e pela minha pila, sentou-se em cima de mim e disse-me:

- Agora não te mexas. Não és tu que o pões cá dentro, sou eu que o faço entrar, percebes? - E foi-se baixando devagar, muito devagar, até o ter todo lá dentro. - Vês? Assim não dói tanto. Gostas? - Esta última pergunta é retórica e não lhe respondo. Para Marieke, o mundo fora da sua vontade é um vasto pântano no qual todas as palavras se equivalem. (Se tivesse de lhe responder, dir-lhe-ia "não, não gosto", mas não me dou a esse trabalho. Gosto dela como é. Gosto de qualquer pessoa capaz de extirpar o mal de um defeito ou o bem de uma qualidade. Marieke é uma imagem perfeita - e bela - do que seria o mundo sem adjectivos.)

A cama é o lugar de todas as maldades, de todas as vontades,  de todos os egoísmos e de todos os altruísmos. Não há amor no universo que chegue para fazer de um orgasmo algo partilhável. Sentada em cima de mim, Marieke masturba-se com as duas mãos. De vez em quando, leva uma delas às mamas, à boca (dela, quase sempre e minha às vezes). Deixo-a sempre vir-se antes de mim, não sei se por simpatia se por medo.  (Exagero. Só muito raramente uma mulher que me deu a simpatia do corpo me indifere ao ponto de me vir antes dela.) 

Marieke vem-se, eu venho-me, ela vem-se de novo, desencaixa-se de mim, diz-me "é melhor lavares isso", dá-me um beijo nos lábios, levanta-se para ir à casa de banho, cruzamo-nos no caminho, dá-me outro beijo, "Amar-te-ia muito, se fosse de amores. Felizmente não sou", vai à cozinha buscar uma cerveja, volta para a cama, "Foder contigo é melhor do que foder com qualquer outro gajo que conheço. Sabes porquê?" não me dá tempo para responder, "porque tu não esperas nada de mim. Tudo o que tenho para te dar é este corpo e esta liberdade e tu aprecias os dois e satisfazes-te com isso. Não pedes mais nada."

Um dia apareceu-me em casa com uma mala. 

- Venho passar um mês contigo, para ver como seria a nossa convivência. Tenho as hormonas aos urros e nada me garante que um dia destes não me esqueça de comprar a pílula. Além de que estou farta de andar por essas ruas às duas da manhã com a cona cheia de ti. 

Sabia perfeitamente que ela ia frequentemente a uma discoteca qualquer buscar um gajo, quando saía de minha casa. A história da "cona cheia de mim" não me convenceu por completo, mas deixei-a ficar lá em casa. Pouco tempo depois casámo-nos - pela Igreja, claro.

- Gosto de ver os padres vestidos de cerimónia e do cheiro a incenso. Não te importas, pois não?

- Não. 

- Óptimo. Vamos foder?  Já tenho um padre.

Marieke é pequena, magra, loira de olhos azuis, belga, advogada num dos principais escritórios de advogados do nosso país, para onde imigrou ainda jovem. Comprou uma quinta na Beira, onde vai pintar aos fins-de-semana e nas férias. Para modelos, usa os empregados, a quem paga a dobrar os dias em que não trabalham na quinta para posar. São telas grandes, sempre quadradas, três por três, quatro por quatro metros. "Para pequena basto eu". Raramente a acompanho. Prefiro ir navegar com o miúdo, num barquito que comprei há algum tempo. Chama-se ADN, tem três camarotes, um dos quais é o do Pedro, que vai agora fazer oito anos e já se habituou a estes dias sem a mãe. Às vezes pede-nos para ir à quinta e nós dizemos que sim. Nessas ocasiões, vou sozinho para o mar. Nunca gostei de relações simbióticas, mas esta - ainda não consigo chamar-lhe casamento - excede tudo aquilo que sonhei um dia ter. Por vezes, Marieke vem navegar comigo. Tão raramente como eu vou para a quinta: meia dúzia de fins-de-semana por ano, mais coisa menos coisa. Pedro gosta destes dias passados a três. Vamos a Sesimbra ou a Setúbal, dormimos lá fundeados. Muitas vezes nem saímos de bordo; outras, ficamo-nos pela praia ou por um dos restaurantes ali perto, onde bebemos um café. 

- Carlos, chega aqui. - Estou na cozinha a arrumar a loiça do jantar, tarefa que executo com prazer. - Há quanto tempo estamos juntos, lembras-te?

- O que queres dizer com "juntos"? Temos várias modalidades de junção. De zero a três, na verdade.

- Juntos no sentido de nos amarmos. Desde quando nos amamos?

- Não sei. Nunca pensei nisso.

- Eu também não. É curioso, não achas? Os peixes também não sabem o que é a água. 

Pedro dorme no camarote do capitão, a ré a estibordo, porque prefiro dormir à proa, sobretudo quando estou fundeado. Ele orgulha-se, claro. É um miúdo autónomo. Desde que tenha comida e um livro ou um brinquedo não se dá por ele. Tenho um cabo amarrado pela popa,  com uma defensa no chicote e sabe que não pode  passar para lá da defensa. Durante o dia ouvimo-lo chapinhar na água; à noite recolho o cabo e ele ou vem para o salão - onde estamos agora, a nortada arrefeceu esta noite de Setembro - ou vai directamente para o camarote.

Ao contrário do que pode  parecer, conversamos bastante: às refeições,  as vezes quando ele nos pergunta qualquer coisa do livro que está a ler, quando não consegue fazer os trabalhos de casa. Marieke fala português com ele. 

- Já não sei flamengo. - É mentira, mas na verdade não fico aborrecido. O flamengo é língua de cervejeiros. Se Marieke fosse francesa, insistiria para que falasse francês com o miúdo. Língua de vinhateiros, de intelectuais e de mulherengos. Arranham menos a garganta.

- Vai para a cama, Pedro. Está na hora de te ires deitar.  - Pedro obedece sem reclamar. Sabe que pode continuar a ler, adormecer quando quiser. Dá-nos um beijo de boa noite, vai para o camarote, fecha a porta - imposição nossa, já antiga.

O ADN balança suavemente. O vento e os brandais estabeleceram uma conversa cerrada, o casco e as vagas outra. Fazer amor no camarote de vante de um trinte e seis pés requer muita calma, muita imobilidade, tem mais a ver com o mergulho do que com a escalada. Cada milímetro quadrado de pele deve ser explorado até ao esgotamento; depois, passa-se ao seguinte. Indústria extractiva, nada de ginásticas. Com o joelho, pressiono-lhe o clitóris, com a mão direita acaricio-lhe a orelha ou os cabelos, beijamo-nos, os cabelos loiros de Marieke parecem traços de tinta entre os meus dedos. Substituo o joelho pela mão. Gosto de o sentir crescer, molhar-se, afago-o suavemente. Marieke arqueia-se, leva as mãos aos ombros e aperta-as com força. Volta-se de costas e diz-me:

- Vá, agora é a tua vez. 

- Não, Marieke. é a nossa vez.

- Deixa-te de mariquices. - Prolonga a segunda sílaba e quase não pronuncia a última. - Deixa-te de Marieke. Pensa em ti. Fode-te-me. Agora és tu. Enterra-mo fundo, até à última terminação nervosa, não deixes nenhuma por tocar. É para teu bem. Sentes o oceano que tenho dentro de mim? É para ti, meu cabrão adorado, só para ti, é todo teu, sou toda tua e és o único homem a quem disse isto até hoje, serás o último, provavelmente, vem, homem, enterra-te em mim até sentires a ponta da piça nos ovários, no estômago, nas mamas, faço-te um broche por dentro, tira-me o ar, enche-me essa cona de ti como se fosses o último homem na terra, põe-me as mãos nas mamas e puxa-me para ti, isso, estás quase a vir-te, não estás? Eu sinto, meu filho da puta, sei ler-te mesmo de costas, não tarda rebentas-te e é bem feita, rebentada estou eu agora, não passo de uma imensa cona toda tua, enche-ma, és a maré e eu o porto, és o dragão e eu  fada que o doma, tenho-te preso pelos tomates como tu me tens a mim na ponta desse caralho, porra, porra, porrrrraaaaaa. - Tudo isto sem uma palavra, sem um som para além de uma longa expiração feita com  boca semi-fechada, como um assobio que ficasse a meio. 

De manhã acordo, levanto ferro e navego para Oeste. Levo-os aos dois para o mar, para longe de terra. Vamos a um largo e o ADN - um antigo barco de regata convertido em cruzeiro - salta alegre e leve, como se tivesse sido ele a dar a foda. como se fosse a Marieke e eu num só corpo, ainda no estertor silencioso de um amor que nasceu da liberdade, do prazer, do silêncio.

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