A razão pela qual a malta pró-Covid não integra a Suécia no seu raciocínio - refiro-me às pessoas com capacidade de raciocinar - é simples e conhecida. É um viés epistemológico bem conhecido de quem está familiarizado com a pesquisa científica. Consiste em não considerar os dados que vão contra a hipótese do investigador. Suponho que os meus leitores sabem o suficiente de investigação científica para dispensar o próximo parágrafo, mas vou escrevê-lo na mesma.
A pesquisa científica começa com uma hipótese. Alguns exemplos seriam: os corpos mais pesados caem mais depressa do que os corpos mais leves. A Terra é o centro do Universo e todos os astros giram em seu redor. A Terra é plana, porque se não fosse plana as pessoas do hemisfério Sul caíriam. As doenças são provocadas por desequilíbrios nos fluidos corporais. Estas hipóteses - formuladas explicitamente por muita gente honesta e séria - mantêm-se até à chegada de um negacionista que diz «a força que atrai os corpos para a Terra é a mesma e aplica-se a todos igualmente. Os corpos mais leves caem à mesma velocidade do que os mais pesados e se isso não se vê é porque há outros factores em jogo.» Ou: «A Terra gira à volta do Sol porque se tomarmos o Sol como referência do movimento dos astros a astronomia simplifica-se» - isto é importante: a simplificação vem do que não se vê. A Terra é redonda - todos os astros o são, porque não o seria a Terra também? Muitas doenças são provocadas por micro-organismos chamados bactérias (a descoberta dos vírus é posterior). Se se lavar as mãos diminui-se o ritmo de infecções nas salas de operações, apesar de as bactérias não serem visíveis. (Este caso é particularmente interessante: Pasteur teve imensa dificuldade em convencer os médicos a lavar as mãos com água e sabão e essa dificuldade prolongou-se durante muito tempo. Claude Poteau, o primeiro médico a pensar que não se deviam utilizar os mesmos pensos em vários doentes, teve de esperar mais de um século para ver essa prática aplicada, apesar de os resultados da sua hipótese serem comprovativos. Curiosamente, o Dr. Semmelweiss foi corrido do hospital onde trabalhava por defender a lavagem das mãos entre autópsias e partos. Os negacionistas nunca tiveram a vida fácil).
Bom, passemos. Estamos na fase em que uma hipótese é formulada, é testada e os dados ou a confirmam ou a infirmam. Ou, como é frequente, alguns dados confirmam-na e outros infirmam-na. Um cientista é um ser humano, não é um robot desprovido de emoções - é por isso que os seres humanos são melhores do que os robots, por causa das emoções - e vai tão natural como inconscientemente dar mais peso aos dados que confirmam a sua hipótese, aquela na qual ele tem vindo a trabalhar e à qual dedicou muito tempo e esforço. Muitos cientistas esquecem uma verdade básica da pesquisa: não há experiências falhadas. Uma experiência que não confirma a hipótese que lhe deu origem não falhou.
Os nossos amigos pró-Covid esquecem este facto basilar: não há experiências falhadas. A Suécia não é um bocadinho de outro planeta que se incrustou no nosso. O método sueco de lidar com a pandemia deve ser integrado nos raciocínios sobre a Covid. Talvez haja factores não imediatamente visíveis, contra-intuitivos, que expliquem os resultados suecos, da mesma forma que a gravidade é a mesma para todos os corpos ou que lavar as mãos mata uma data de corpos que não se vêem, ou que a Terra não é plana e os habitantes do hemisfério Sul não caem por causa da gravidade e assim por diante, A intuição é fundamental para o método científico - mas, como tudo o que tem a ver com esse método, deve ser posta à prova. A intuição é o maior impulsionador da ciência e o seu maior obstáculo, simultaneamente. Sem intuição não há ciência, com excesso dela tão pouco.
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