A minha vida deixou de ter ameaças de morte («ameaças» no sentido de possibilidades), seja por minha «culpa», seja devido aos progressos da meteorologia, seja porque me meto menos em aventuras - ou ninguém me quer para elas, não sei. Pouco importa. Tenho o cabaz cheio de foices que me passaram ao lado, muito perto. Às vezes penso nelas, em tudo o que não teria feito se me tivessem acertado, na sorte que tive em quem as manejava ter sido desajeitado naquele dia, naquele momento, comigo. É possível que ainda me apareça alguma, claro - não tenciono passar o resto da vida confinado para não morrer - e se aparecer cá estarei para desafiar a sorte, a habilidade ou a carcaça, a quem tanto devo.
De todas, aquela de que tenho menos probabilidades de morrer é a Covid. Nem sequer de a apanhar, claro, porque sabe-se hoje que o vírus é muito menos contagioso do que se vendeu no início, porque ser gordo não é ser obeso, porque a diabetes que tenho não passa de uma ilusão de óptica (o meu médico de família não lê o DV, é um homem sensato), porque tudo indica que já a tive, porque - enfim - não me «apetece» (isto não é infantilidade, mas não vou desenvolver muito).
Aconteça o que acontecer, se o vírus me apanhar é a mim que apanha. Não mereço que se feche o país para eu não morrer de - ou, estatisticamente mais provável, com - Covid.
Nem eu, nem ninguém. A morte, seja ela provocada pela doença, pelas escolhas de vida de cada um ou pela escolha simples de cada um é um processo individual, por muito que o Dylan diga que não é o fim. Mas não falo pelos outros - falo por mim, eu, rapazinho maior e vacinado (não contra a Covid), cujo cabaz de foices apesar de cheio ainda tem lugar para mais uma, inevitável. Não fechem o país por tão pouco, não fechem os cafés e bares e restaurantes onde espero que a minha morte seja celebrada com um inesgotável chorrilho de rhum punches, Alexanders, vinho tinto Haut Marbuzet, ti' ponches, cervejas Red Stripe e Smithwicks, whiskies Talisker, Lagavulin ou Laphroaig, rum Mount Gay (ou El Dorado ou Flor de Caña ou Trois Rivières ou assim), mai-los nacos de carne com três centímetros de espessura entre o cru e o mal passado, chili con carne picante de fazer um cavalo chorar, garoupa assada nas brasas ou no forno, as Vésperas de Rachmaninov, a Ressurreição de Mahler, as Suites Inglesas de Bach tocadas por Glenn Gould, a música eterna de Hildegarde von Bingen, leituras de Borges, Yourcenar, Beckett, García Márquez, Pessoa, Alexandra Pizarnik, Cavafis e miúdas giras, muitas e muito... E vida, vida, vida. Não vai acabar comigo - nem com mais ninguém.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.