15.4.21

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 15-04-2021

Mais uma estadia que se esvai pelo ralo do tempo. «Até quando?», pergunto-lhe (ao tempo). Diz que não sabe. Estou condenado à vida  que escolhi, o que só superficialmente é uma contradição. Acreditar no contrário é acreditar numa série de coisas que todas, bem espremidas, vão dar ao totemismo, à ideia mágica de que sabemos tudo, à percepção errada de que uma condenação é uma fatalidade, um castigo. Conheço imensa gente condenada à felicidade, por exemplo. Gente que faça o que fizer, lhe aconteça o que lhe aconteça é feliz, cai de pé, como os gatos e no fim enriquece (de dinheiro) ou fica mais sábia (de conhecimento). Conheço imensa gente que, essa é que é essa; e conheço um que não. Convivo com ele vai para sessenta e alguns anos e não há maneira de não ser não. 

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«Há que distribuir o mal pelas aldeias», diz-me T., miúda mais gira do que a média, se por gira entendermos bonita, esperta e inteligente, tudo amalgamado numa só pessoa. «Pois. Já o bem ninguém o distribui», respondo. É verdade: distribuir o mal é sinal de bom senso, inteligência ou cuidado pelos outros. Já na distribuição do bem ninguém vê nada de bom. Só tolice, patetice, santidade ou parvoíce, à escolha do freguês.

Não percebo nada disso. Entre o mal distribuído urbi et orbi e o bem guardado venha o diabo e escolha: demasiado bem faz mal, que o diga qualquer heroinómano ou outro crente na vida eterna.

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Hoje escrevi um texto ao qual dei o título de «Eu cresci a ver navios». Infelizmente fiz muito mais do que crescer. Vivo a ver navios. Isto é: literalmente. É como se a minha vida fosse um navio, daqueles antigos, de carga geral, com paus de carga, portalós, «arreia», «iça», lingadas e conferentes com um pauzinho na mão para indicar ao homem do guindaste a direcção. Passo a vida a estivar cargas antigas e a arranjar lugar para as novas, como se não tivesse que cheguem.

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Écartèlement é o título de um livro do Cioran. Se não estou em erro, é o único que não li. Não preciso: é o que vivo todos os dias.

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Digo a S. que me vou embora e ela responde bebendo uma garrafa de Bailey's praticamente toda em duas horas, ao gargalo, enquanto fazia um telefonema de trabalho. E ainda há quem se pergunte porque gosto tanto de mulheres. Daquelas com M, que preferem beber a falar, calar a falar e nos deixam o lazer de compreender o que há a compreender. Dois silêncios que se compreendem melhor do que muitas palavras. Chamem-lhe o que quiserem, eu não tenho palavras. Fugiram todas para o refúgio das palavras.

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