29.6.21

Cancros, lutas

Como tenho bastantes probabilidades genéticas de um dia ter um cancro, pergunto-me muitas vezes como reagiria - como reagirei - se ou quando isso me acontecer. Só há duas alternativas: lutar ou não lutar. A minha propensão é para não "lutar" (aspas porque me apetece), mas toda a gente sabe que esse é o tipo de decisões que não se faz in abstracto. Só perante elas saberemos como reagiremos.

A verdade, porém, é que tenho uma amostra: o P. é um cancro que me rói o interior do corpo, o interior dos dias e das noites. E Deus sabe quanto luto - contra ele e contra a vontade de parar de lutar. Como um cancro, é muito mais do que a doença; e invade tudo. De repente dou por mim a lutar contra uma força dentro e outra fora, as duas atacando por vezes coordenada outras separadamente. Não me passa pela cabeça abandonar? Passa. Todas as horas, todos os minutos de todos os dias. Mas não o farei, pela simples razão de que não posso. "Não poder" tendo aqui um sentido simultaneamente metafísico e telúrico, como as forças que me atacam, vindas de dentro e de fora: não se pode abandonar uma luta contra algo que é mais forte do que nós. É como ceder a um ciclone: tu não cedes, ele é que ganha. Mas lutas até ao fim, porque não o deixas ganhar sem lutar. É como se só se pudesse perder contra iguais ou inferiores. Contra o que está acima, nem pensar em abandonar a luta. Questão de honra: perder  contra um igual é azar; acontece a qualquer. Não lutar contra um ciclone é cobardia. Não tem nome. (Isto é um bocado romanceado. Lutar contra um ciclone consiste sobretudo em fechar-se dentro do barco e esperar que ele não se parta. Curiosamente, essa espera está isenta de medo, daí a analogia: não tenho medo de ti, P. Tenho medo de te abandonar, isso sim: vergonhoso. Desonroso.)

Ou seja: se um dia tiver um cancro, sei como - muito provavelmente - reagirei.

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