Pusemos as velas no
PANDA. É um passo importante e simbólico, passe o pleonasmo. O homem é um
animal de símbolos. Se calhar são eles que nos separam dos orangotangos, vá
saber-se. Depois fui tratar dos caixotes que estão no armazém. Resultado: pareço
um museu das dores musculares. Não paro de elogiar os benefícios da idade, mas
os malefícios não são menores. Andam de mãos dadas, por assim dizer. Como tudo
na vida, de resto: orangotangos e orangotangas, homens e mulheres, dores e
prazeres. A verdade é que me sinto bem por ter os trapos a bordo (salvo seja. Trapos
é calão. O termo correcto é: panos). Foram feitos pelo meu amigo Pedro Pires de
Lima, que é um dos grandes veleiros que conheço – por isso lhe faço publicidade,
já que ele não a faz a si mesmo: se algum leitor precisar de panos para uma
embarcação de vela entre os quatro e os quatrocentos pés fale com o Pedro. Eu
dou o número de telefone e não cobro o serviço (quem faz o sacrifício de me ler
merece um gesto destes).
Aluguei um automóvel ao Egidio – outro de quem dou o número de telefone sem cobrar -; é
confortável e moderno (apita quando abro a porta e deixo as luzes acesas, por
exemplo, um grande favor que me faz) e o Egídio fez-me um desconto aceitável
dadas as circunstâncias. Um dia disse-me que me admirava porque sou um dos
raros clientes que faz exactamente o que lhe digo que vou fazer. Ele também faz
o que diz e também eu lhe aprecio essa qualidade. Os carros nem sempre são tão
modernos ou em tão bom estado como este, mas a verdade é que dispenso grandes
confortos, apesar de os apreciar quando me caem do céu (ou da Driiveme, um
sinónimo).
Isto está a
transformar-se numa lista de fornecedores e não é de todo a intenção inicial.
Era só falar-vos do meu dia, do prazer que é ter os panos a postos, das
cervejas bebidas na Cantina – cada vez que bebo cerveja penso na anedota do
russo que deu duzentos rublos ao médico para poder comer e beber o que quisesse
– do polvo à galega que lá comi. O polvo à galega é como a língua inglesa: fácil de
falar mal e difícil de falar bem. Substituam falar por fazer e chegam
exactamente aonde vos queria levar. A grande vantagem do polvo à galega sobre o
inglês é que este pode ser feio quando mal falado – por um russo ou um chinês,
por exemplo – e aquele nunca é mau. É só menos bom.
O segredo de um
polvo à galega não é o polvo, contrariamente ao que muita gente pensa. Cozer um
polvo é fácil e há montes de truques para lhe quebrar as moléculas de colagénio
de que é feito: congelá-lo, por exemplo; bater-lhe, método bárbaro e
rudimentar; deixá-lo cozer muito lentamente começando por água bem fria, com
uma cebola de tamanho proporcional ao do bicho para se saber quando está cozido.
E por aí fora. Nada disso. O segredo de um polvo à galega reside: a) na
qualidade do pimentão. Sugiro pimentão fumado de la Vera, que é uma
simples maravilha; b) na do sal. Sal de Cocó (sic), da ilha de Cabrera;
c) nas batatas. Não tenho sugestões a dar; d) na quantidade: tem de ser muito.
Hoje foi aqui que o da Cantina falhou: era pouco. E o sal não era de Cocó, mas ninguém
vai a um restaurante esperando encontrar sal de Cocó, o melhor sal que
me foi dado provar até hoje e tem um preço correspondente. Tal como o pimentão
não era de la Vera, mas passemos. Pouco importa: o polvo à galega, as
cervejas, o vinho branco, o trabalho físico, as velas coligaram-se, conspiraram
e ofereceram-me um dia em cheio.
Mas tão pouco era
esta a intenção original deste texto.
Palma-a-sedutora
tem sempre uma surpresa na manga, como aquelas mulheres por quem nos interessamos
por causa das mamas e acabamos a apaixonarmo-nos porque tem um cérebro por
cima. É uma das semelhanças que lhe vejo com Lisboa: são cidades que não se dão
a ver. Escondem-se e reservam-se para alguns escolhidos. Os americanos não são
assim: publicitam-se facilmente, aprenderam a fazê-lo há duzentos anos ou coisa
que o valha. Nós, europeus e nós, ibéricos - ainda mais - somos diferentes:
escondemo-nos, esperamos que o produto fale por nós. Não fala: há demasiado
ruído. Ninguém fala por nós; e o que fazemos só fala a posteriori, não
antes. Isto diz um tipo que é o pior vendedor de si próprio que a humanidade
jamais produziu, dando assim razão àquele ditado segundo o qual quem sabe faz,
quem não sabe ensina.
Há porém coisas que
sei fazer: encontrar bons fornecedores, por exemplo. Claro que tenho a minha
quota de má sorte, tive-a grande nestes três anos de refit do P., mas
ao fim e ao cabo não posso queixar-me. A de boas escolhas é muito maior. Como
os táxis de que falei na semana passada. Suponho que seja consequência do
desenraizamento, desta necessidade que temos de perceber rapidamente com quem
estamos a falar. O único problema é que quando nos enganamos enganamo-nos a
sério, como aquelas pessoas muito pontuais que quando estão atrasadas o estão
muito. Sou assim: nunca me atraso cinco ou dez minutos. Quando me atraso é às
meias horas para cima.
Daqui até ao
desenraizamento – tema originalmente intencionado desta crónica – vai um passo
gigantesco. É possível, claro, relacioná-lo com os fornecedores, com este
hábito de se ficar amigo de quem nos serve bem porque para se chegar até ele
houve, quantas vezes, de se bater às portas erradas. Um desenraizado vive nas
bordas do tempo, passe o termo. Galopamos o cavalo do aqui e agora na terra do
nunca. Ou do amanhã, pelo menos. «Let’s forget about tomorrow / because
tomorrow never comes», diz a canção e é mais ou menos assim. Só que nunca
esquecemos o amanhã: é a véspera do dia em que temos de nos ir embora. Um
desenraizado está, por definição, de passagem. Em movimento. Mas se pára não
cai: fica a apontar para o próximo destino. Um desenraizado nunca está onde
está hoje, mas sim onde estará amanhã. Ao contrário do que parece, a nossa vida
não se resolve com tempo, mas sim com geografia. Nómadas das estrelas, pensava
no outro dia e afastei o pensamento: pareceu-me demasiado bimbo. Depois
recuperei-o: durante anos a minha geografia foi literalmente definida pelas estrelas
(e – raramente – alguns planetas: a Lua, Vénus e Marte). Com um sextante de permeio,
claro.
Um dia escreverei
um hino ao desenraizamento, a esta capacidade de arrastarmos as raízes connosco
como as senhoras de antanho arrastavam saias intermináveis, a esta qualidade
que consiste em fazer crescer raízes onde quer que estejamos, qualquer que seja
o terreno. Há sempre um fornecedor merecedor da nossa estima, um taxista
honesto, um par de olhos com um cérebro por trás.
Um Jaume, da
Bodega Can Rigo, que me dá a provar vermutes, runs e vinhos com o genuíno
desejo de partilhar as suas descobertas (e o legítimo de as vender); para além
de um conhecimento enciclopédico de bebidas o Jaume vende algumas das melhores
tapas de Palma: o polvo à galega, para retomar o tema; as almôndegas, que o meu
amigo Carlos Miguel considera enfadonhas, crítica que compreendo mas não
partilho. Acho-as misteriosas, quando são boas; a tortilla, (esta tendo
um pouco menos de mistério, porque lhe aprendi o truque).
Nós desenraizados
somos o sal da terra – não é de resto por acaso que a expressão vem desse
grande desenraizado que Jesus foi: realçamos o que é bom, adaptamo-nos a tudo,
vimos em formas diversas e vê-se melhor a nossa falta do que se sente a nossa
presença. Um lugar sem desenraizados é insonso, não é? É. Não tem gosto nem cor
nem nada. Um lugar sem desenraizados não é um lugar, é uma prisão. Um deserto
habitado. Um mar sem marinheiros, esses desenraizados por excelência. (Se
calhar fomos nós que lhe demos o sal...)
Um desenraizado é
um desassossegado da geografia, um irrequieto do tempo: tanto está em casa aqui
hoje como estará ali amanhã. O mundo de hoje é em grande parte o resultado
desse desassossego. Esperemos que a modernidade e as suas ilusões não dêem cabo
dele, para que os nossos filhos possam olhar para os Jaumes, os Joans, as
Chinchillas, as Núrias e os Robertos com olhos diferentes dos dos turistas,
perceber que um par de velas bem feitas veste uma embarcação de vela tão bem
como uma míni-saia veste as senhoras, que alugar um automóvel ou levantar um
braço na rua para mandar parar um táxi são – ou pelo menos podem ser – actos
incomparavelmente nobres. E que o tempo não passa de uma sinuosa, íngreme e
bela estrada de montanha que ora sobe ora desce, ora aponta para Leste ora para
Norte, Sul ou Oeste, ora está bem pavimentada ora sofreu os efeitos de uma
avalanche. Sabemos de onde partiu mas não aonde nos leva. «A pátria é uma tenda
no deserto», diz um provérbio árabe. A minha casa é uma gota de água no oceano,
acrescento eu. Ou de chuva. Ou da torneira. Ou do rio, do lago, da barragem, da
nascente, da poça na rua, do charco, do pântano, da nascente subterrânea.
Luís Serpa, Palma,
20/06/2021
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.