A minha teoria geral dos preconceitos, elaborada laboriosamente (espero que os leitores notem esta subtil, erudita e fina aliteração) ao longo das quase quatro semanas que levo de vida pensante - a minha teoria geral dos preconceitos, dizia - foi hoje objecto de uma ribombante e múltipla confirmação: os preconceitos têm como função na vida ser demonstrados falsos, ser trocados por outros que sabemos a priori ser igualmente falsos mas cuja falsificabilidade deve esperar o momento correcto, é preciso esperar pacientemente por esse momento, num elaborado exercício de dissonância cognitiva que se estende pelo tempo, uma dissonância diacrónica, por assim dizer. Mais: o momento da troca de preconceitos é geralmente um momento de alegria intensa, vitorosa, da qual todos saímos vitoriosos: o preconceito vencido, o novo e o feliz autor (não tenho a certeza de que este seja o termo certo: um preconceito digno de respeito faz-se a si próprio, não tem autor). Bom. Deu-se o caso assim: fui entregar o carro ao Egidio, que não podia dar-me boleia para a marina por ter sido vítima de um acidente sobre o qual não inquiri, mas que estimo suficientemente grave para o ter ao telefone em lágrimas, de manhã. Estava esganado de fome, pelo que resolvi comer nas imediações, estas não sendo exactamente o centro da cidade. Fui dar a uma tasca, com o pior aspecto que uma tasca pode ter, agravado pelo facto de se anunciar como pizzeria. Não vos peço para imaginar o lugar - aliás, peço para não o fazerem. Digamos simplesmente que era feio.
[Escrevo isto no Jaume. Uma senhora que me faz vagamente lembrar a Maria Callas e está rodeada por demasiados homens para o meu gosto - dois - faz tudo o que pode para interromper este relato. Não o conseguirá, como verão.]
Além de tasca - que em si mesmo não é propriamente um defeito, é só um pré-aviso - era uma pizzeria, isto sim, um defeito e grave, feia, inóspita, pouco acolhedora. O gajo atrás do balcão correspondia-lhe a cem por cento (não digo duzentos para não ofender os meus leitores mais apreciadores de matemática). Era feio, antipático e só tinha vontade - pareceu-me - de me ver dali para fora. Debitou-me a lista a uma velocidade estonteante (literalmente. Estava cheio de fome). Na verdade, pensei simplesmente que ele não me queria ali, que desejava ver-me partir o mais depressa possível, tão depressa como debitava a lista, que talvez tivesse um preconceito contra pobres marinheiros solitários e longe de casa (já não posso dizer «solitários», mas isso ele não sabia).
Bom, resumo a hstória: [a Callas pôs-se de costas para mim e ao meu lado sentaram-se duas senhoras jovens e feias como os trovões acompanhadas por um senhor de meia-idade igualmente feio.]
[Duas senhoras que já não têm idade para ser feias mas ainda o são. Isto merece uma teoria.]
Ou seja: o caixão do preconceito contras as pizze levou hoje o último e definitivo prego. O preconceito contra tasqueiros que parecem antipáticos levou outro. O que me levava a suspeitar de tascas na periferia das cidades outro ainda maior. Que alegria! Três preconceitos num almoço só.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.