24.6.22

Diário de Bordos - Aguadulce, Andaluzia, Espanha, 24-06-2022

A razão pela qual um marinheiro digno desse nome não acredita em milagres é que eles existem. Os milagres são como as bruxas, que em galego se chamam meigas: que los hay los hay. Tudo isto para dizer que estou sessenta milhas mais longe do que pensava estar, porque os milagres se dividem em duas categorias: depois de ler as previsões meteorológicas e depois de as experimentar.  Visivelmente o tempo não leu as previsões e não sabia o que fazer. Na dúvida, baixou os braços.

Amanhã vai ser preciso outro: o objectivo é conseguir passar o cabo de Palos, sabendo que não vamos conseguir passá-lo e que muito provavelmente vamos ter de passar um ou dois dias em Cartagena. Espero sinceramente que desta vez o tempo leia as previsões e me force a ficar em Cartagena, um dos meus poisos favoritos nestas bandas. Se não, lá passarei o célebre cabo, outro milagre.

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A minha trotineta porta-se bastante bem. A ver como se portará amanhã. Faz barulho como um comboio de transporte de bisontes vivos, mas aguenta bem o mar - admitidamente hoje fraquito - e tem tudo o que precisa de ter, não tendo nada do que não precisa. Avança a quase vinte nós de média, mas cheira-me que amanhã vai adoptar um passo mais lento. Consome cinquenta litros à hora, o que faz dois litros e meio por milha. Trezentos e setenta metros por euro.  A minha bicicleta é mais barata. Infelizmente não anda no mar.

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A hermenêutica dos milagres tem que se lhe diga.

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Não é só a dos milagres, verdade seja dita. 

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A razão pela qual ninguém consegue perceber um marinheiro é que ele tão pouco é capaz de perceber ninguém que não o seja. Somos o povo eleito da humanidade. Resta saber quem nos elegeu - se Deus, se o Diabo, se uma mistura dos dois.

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Se por acaso algum dos meus leitores passar por Aguadulce: La Cantina del Marinero, na marina. É um erro confessar isto, mas é para ir a bares / cafés / restaurantes como este que nós navegamos. De bar em bar com o mar pelo meio.

A conta não incluía metade do que nós comemos e bebemos (enfim, bebemos). Avisei a senhora e ela responde-me: "a conta é essa e é isso que tens de pagar." Acresce que tudo o que comemos e bebemos estava magnifico. Como toda a gente,  os misantropos enganam-se. Resta saber se mais se menos do que "toda a gente".

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