2.6.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-06-2022

Forçoso é reconhecer que isto é uma infantilidade indescritível: bebo vinho às escondidas no avião da Vueling. Porém, a história começa com uma preocupação bem adulta: poupar dinheiro. No Hediard pediam-me cinco euros e noventa cêntimos por uma minúscula garrafa de uma zurrapa qualquer (manifesta injustiça: não faço ideia se o vinho é bom ou mau); no Duty Free uma botelha normal de Cabriz Reserva custa seis e trinta. Claro que com as demoras atinentes aos diferentes processos só consegui beber um copo sentado - e sentido - enquanto comia a correr o que pude da sandes de panado de frango (sete e não sei quanto. Um roubo). O resto da garrafa veio para bordo, bem rolhada e ensacada.

Como os preços do vinho no avião não são muito diferentes dos da Hediard e como hoje, excepcionalmente, vou dormir numa camarata (mais uma preocupação de pessoa crescida, os airbnb e os hotéis em Palma estão pela hora da morte) achei que valia a pena correr o risco de ser apanhado pela hospedeira - a que tem o cabelo em forma de lódão ou de queda de água num rio africano na estação das chuvas, espero - e aqui vou no meu terceiro copo aviónico.

A cada um penso no ex-presidiário com quem trabalhei em Genebra. Todos os dias me trazia um exemplar do Journal de Genève surripiado da caixa. Uma vez disse-lhe que não precisava de roubar o jornal para mim e ele respondeu:

- Preciso de fazer uma malandrice todos os dias.

O homem passara seis anos na prisão (e isto suspeito que fora só a ultima pena. Deve ter havido mais antes), fartava-se de me contar histórias sobre a vida encarcerado - eu não sobreviveria - e consolo-me pensando que o que faço não passa de uma infantilidade, como as malandrices do outro, por muito nobres que sejam as minhas motivações. 

De maneira vou no terceiro copo, suspeito que a garrafa de Cabriz já só tem o rótulo ou lá perto e imagino que vou dormir bem. Isto chega para me consolar.

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Satisfaço-me com pouco, é verdade. Vinho no copo, comida no prato, amor na vida, livros nas estantes ou na mesa de cabeceira, luz bonita para fotografar, um barco para navegar, tudo isto embrulhado em solidão, aquela solidão boa, da Bayer, que nunca me larga mesmo qando estou acompanhado e à qual regresso feliz entre cada companhia ("feliz" nem sempre é verdade, mas é mais bonito do que "resignado", por exemplo).

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Daqui a meia-hora aterro em Palma-a-suave. Não sei quanto tempo lá ficarei porque depois vou a Genebra ver a descendência. Integrei finalmente o clube dos avôs, momento esse que era para mim,  até lá chegar, fonte de inquietação e interrogação: como seria, ser avô? Sou o último dos meus amigos próximos a fazer parte desse grupo e tudo o que eles me diziam sobre a grande-paternalidade (?) me parecia clichés de velhos ou clichés tout court. É uma coisa e outra, dois prazeres bem escondidos num galicismo. Ou seja: deve ser reacção biológica, coisa darwiniana, talvez aquele gajo das formigas não estivesse assim tão enganado (não estava. Só estava incompleto.)

(Cont. Talvez)

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Sim, continua. Cheguei ao albergue e a minha reserva - confirmada e tudo - não estava lá. O porteiro da noite já tem experiência na situação. Esconde-se atrás de "yo soy solo el nochero y no puedo hacer nada", repetidamente - a cada exclamação minha, que verdade seja dita não são muitas. É óbvio que a) aquilo já aconteceu muitas vezes e b) não há nada a fazer, excepto ir para o P. e esperar que me deixem lá dormir. 

Deixam.

É portanto da sublime embarcação que agora escrevo, comprimidos da noite tomados com a réstea de Cabriz - não daria para mais -, luzes encontradas - as etiquetas dos interruptores estão quase todas ilegíveis - bomba da retrete inoperacional. O beliche não tem lençóis, o tempo está quente e amaldiçoo a minha vaidade: trouxe o casaco em pele de carneiro que comprei em Gibraltar (por cem euros em vez de trezentos) e tive de o tirar ainda antes de entrar no táxi do aeroporto. Vai para as caixas que estão aí para ir para Lisboa. Amanhã será um dia de trabalhos: tornar o P. mais habitável, preparar a mudança de armazém, procurar trabalho para o que me resta de Julho e Agosto, tentar encontrar uns dias de trabalho já para encher o mealheiro, quase vazio. Nada de inesperado, em suma. Até de vir acampar no P. estava à espera, como esperava a noite que me espera. 

Apesar de tudo, não consigo invejar os mangas-de-alpaca, prova de que no fundo tenho aquilo que quero ter. Às vezes mais, outras menos, mas o que tenho é o que fiz por ter. 

Claro que não me importaria nada de trabalhar para um armador menos peculiar, é verdade. Mas isso paga-se, não com noites desconfortáveis mas com outras coisas. É simples: não se pode ter tudo ao mesmo tempo. E eu tenho aquilo que mais prezo na vida: liberdade. 

Liberdade. É cara? Sem dúvida. Mas é a única coisa cujo preço estou disposto a pagar. Seja em que moeda for, desde que não seja dessas emitidas por bancos centrais ou por computadores,  claro. Por ela, sujeito-me a noites mal dormidas, a não saber do que amanhã será feito (não sei sequer de que fiz o ontem...), a ser "incompreendido" (entre aspas porque é gozo. Poucas coisas há que me interessam menos do que a "compreensão" dos outros. Nem o conforto me interessa tão pouco).

Estou rodeado de gente que está "bem na vida": amigos, familiares, todos passam os natais em família, recebem e dão prendas, vão de férias em Agosto, têm trabalho todos os dias e tomam conta dos netos quando os filhos vão ao cinema. Por vezes estou aflito e recorro a esses estar-bem-na-vida. Mas são momentos fugazes e não põem em causa a minha liberdade. Ela é a fortaleza que construí e me acolhe desde muito jovem. Não conseguiria mudar de casa, mesmo querendo.

E assim entro na noite que me espera. A mistura de Cabriz e Flexiban fará certamente aquilo para que a química serve: melhorar a vida dos homens (e dos animais e das plantas  mas isso são outras histórias).

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