Apesar deste estúpido poniente a estadia em Puerto Banús não se vai prolongar. Amanhã de manhã cedo vou a um estaleiro que fica a dez milhas daqui fazer uma limpeza aos fundos; à tarde chega o A., a quem pedi ajuda porque sem piloto não posso ir sozinho - para grande pena minha, mas isso... Com todas as minhas penas construir-se-ia uma passarola dez vezes maior do que a do bom padre Gusmão, portanto mais vale não lhes ligar muito. Vamos muito provavelmente navegar de noite para aproveitar as acalmias da besta. Como tantas vezes fazíamos quando subíamos a costa portuguesa: um opíparo jantar, um bom whisky ou dois e ala que se faz tarde. Só que hoje já não bebo antes de ir para o mar, isto de um gajo crescer é uma porra que aconselho todos os jovens a evitar. A vida tem muito menos piada - e muito menos a preservar, pelo que tantos cuidados parecem à primeira vista incompreensíveis.
Ao coro de vozes que me manda estar calado junta-se agora a do meu neto Leonardo. Ouve-se por cima de todas as outras, apesar dos seus escassos três meses. Tenho qualquer coisa que preservar, sim. De maneira que os sakes que agora bebo devem essa honra a só sair amanhã de manhã e não daqui a pouco.
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Sakes esses bebidos no restaurante Sakura, um dos melhores japoneses que conheço. Acontece de vez em quando: num porto por vezes sou invadido pela sombra do Rotschild e faço um disparate alimentar. Tão disparate que não posso repercuti-lo todo no pobre armador (para quem não tenha percebido: isto é uma ironia. Neste caso, o senhor é podre de rico. Podre de pobre sou eu). Ao meio dia entrei num japonês, provável (mas de certeza inconscientemente) atraído pelo nome - Kona (Kóná, para ser preciso) - e só quando já estava sentado e de computador aberto em cima da mesa dei pelos preços. Comi o menos que me foi possível e mesmo assim a refeição foi caríssima. Tão pouco foi o que me foi possível que saí dali e tive de ir ao Casa Blanca - uma sólida e respeitável cervejaria tradicional - comer mais qualquer coisa. Pois agora venho ao Sakura - o restaurante que já duas pessoas me tinham sugerido - e desmanchei-me de novo nesta mistura de fome e vontade de comer que faria o tio Benjamim franzir o sobrolho. Ainda não sei quanto vou pagar, mas vou-me preparando à força de sake, apesar de este ser exponencialmente mais barato do que o outro.
Seja como for: aconselho os dois restaurantes mencionados neste post. Seja como for: tenho uma atenuante, uma espécie de tsunami afectivo (o jogo de palavras não é gratuito). Seja como for: que se lixe. O armador paga uma parte, eu pago outra e não se fala mais nisso.
Não, hoje não há mais sake. Ainda acabas a acreditar no Pai Natal. A esperança e os ovos de serpente têm uma coisa em comum: há que matá-los no ninho. E a esta hora é tarde para tsunamis, sejam eles de que tipo forem.
Concentremo-nos no jantar de hoje e deixemo-nos de considerações espúrias. Daqui a pouco chega a conta, o Rotschild sai de fininho e cá fico, sozinho e entregue aos bichos. Preciso de ir para o mar, onde não há nada nem ninguém se não eu e um bote a vinte nós.
[PS: Sonha.
PPS: Um marinheiro é um gajo que sabe que nada vai correr como ele quer, que não acredita em milagres e apesar disso acredita que as previsões meteorológicas por vezes se enganam, que o poniente não dura sempre e que bastantes probabilidades de no dia tal estar no porto tal, como inicialmente previsto. Somos como aquelas longas varas dos funâmbulos - mas sem ninguém no meio a segurá-la.
PPPS - É que uma coisa é não acreditar em milagres e outra, completamente diferente, é não acreditar em milagres. Não se deve confundi-las uma com a outra.]
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.