Se fosse preciso começar por dizer qualquer coisa, começaria por dizer que não é preciso dizer nada. Cheguei à praça de San Francisco mais morto do que vivo e não precisei sequer de beber muito para chegar a esse lamentável ponto. Nove horas de mar numa lancha de nove metros (é coincidência) derreiam qualquer um. Ainda por cima esfomeado e cheio de água - comprei seis garrafas de litro e meio em Palma e já só restam três, isto quantificado tem outra graça. O Yacht Port, de que tanto gosto, foi uma desilusão: os trâmites têm de ser feitos no exterior para «evitar contágios», as pessoas do escritório, normalmente tão simpáticas, todas de trombas, eu idem ibidem. Deixo as bancas para amanhã, não preciso de largar muito cedo, tenho seis horas de caminho até Almerimar. O objectivo sendo estar dia nove em Banús a tempo de apanhar um avião para Palma.
Sonhar é permitido. Já desviar-me do rota inicial - o estado em que cheguei à praça de San Francisco em demanda da Vermuteria de la Charito - deve ser punido com a perda de pelo menos duzentos leitores. Pois bem, fui jantar ao Skillets, que fazia as melhores lulas à andaluza do Universo e arredores (não sei se ainda faz) - e pus-me a caminho para aqui (escrevo na dita vermuteria). Tem uma colecção de vermutes absolutamente inacreditável: não conheço um. Isto de se sair da «zona de conforto» (aspas porque troço) tem que se lhe diga.
E não é só por causa dos vermutes. Os preços, para quem vem de Ibiza, deixam um homem honesto boquiaberto, a pensar «Mas estes gajos enganaram-se?» Aparentemente não: os preços são metade dos de Ibiza e setenta e cinco por cento dos de Palma, que já de si são setenta e cinco por cento, etc. No (longuíssimo) caminho para aqui precisei de combustível, entrei num bar bem apessoado porque anunciavam tinto de verano e hey, presto: dois euros, dois. Acho que as proporções acima estão erradas, mas pouco importa. O grande problema agora é acabar de beber o quase litro de água que inconscientemente encomendei, sem pensar na asneira que é misturar bebidas, como este excelente vermute que agora bebo ao mesmo tempo que bebo água, ínsipida por natureza. Ainda vejo, de vez em quando, a terra mexer - insisto, não é por causa do pouco que até agora bebi. É mesmo porque nove horas naquilo não lembra ao diabo e este vinga-se.
Bom, resumindo: estou na praça de San Francisco em Cartagena, cidade que adoro e na qual me sinto em casa, na vermuteria de la Charito a beber um vermute marca Povarelo e a pensar nas pessoas que não gostam do Verão, não conhecem Cartagena e pensam que vermute é Martini e vice-versa. E a perguntar-me se chamo um táxi ou vou a pé, questão existencial apesar de não parecer. Beber água dá-me cabo dos diferentes sistemas de que este meu corpo reticente e ingrato é composto.
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A travessia foi longa, chata, ruidosa mas incluiu um pouco de adrenalina: foi a maior distância que fiz até hoje no S. R.. Tinha, naturalmente, portos de refúgio para bancas se fosse preciso, mas cheguei aqui sem parar. Cento e cinquenta e quatro milhas, admitidamente a duas mil e novecentas rotações em vez das habituais três mil (o mar não dava para mais). Cheguei com o tanque a catorze por cento. Só não percebi ainda se estes catorze por cento são contados acima da margem da reserva ou se já estão incluídos nela.
A questão é puramente académica e releva dos meus esforços permanentes para entender a modernidade. O Raymarine dá um monte de informação. Agora, trata-se de a descodificar, desconstruir, dizia o outro. Compreender, digo eu. Não tenciono repetir tal façanha (é nestas coisas que façanha e estupidez se cruzam, não é? Não, não é. Tenho de chegar rapidamente a Banús, ponto).
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Há duas coisas para as quais não tenho jeito: procurar trabalho e seduzir senhoras. Felizmente, os primeiros caem-me nos braços sem grandes esforços meus (duzentos e cinquenta anos a trabalhar nisto não conta como esforço). Já as segundas são mais renitentes e quando calha cairem fogem a sete pés.
Isto nada diz das virtudes relativas de uns e de outras. Diz apenas que a vida não é um tabuleiro de xadrez, é tudo.
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Mais tarde ou mais cedo vais ter de ir para bordo, Luís. Não vale a pena esconderes-te atrás de um copo de água, rapaz. Nem de uma garrafa, sequer. A água é viciante. Larga-a de mão. Acaba o vermute, paga e vai a pé para a marina. Assim diluis essa mistura de oxigénio e hidrogénio que há não sei quanto tempo te anda a envenenar.
Uma bebedeira de cansaço e água vale tanto como as outras. É mais cansativa, simplesmente.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.