6.7.22

Diário de Bordos - Santa Eulalia, Ibiza, Baleares, Espanha, 06-07-2022

A mulher tem uns setenta anos, não nasceu de certeza na valeta e grita que nem uma desalmada, não sei se por estar grossa se por ter snifado demasiado, hipótese que em Ibiza não deve ser descartada. Chateia-me um bocado porque me corta a concentração. Estou parado aqui por causa do vento, outra vez - creio que nunca mais direi na vida que no Verão o Mediterrâneo só tem térmicas. Estivesse eu à vela e força quatro a cinco na popa seria uma bonança, mas numa trotinete a motor nem pensar. Paciência. Talvez consiga largar amanhã à tarde. O lugar é detestável, não tem ponta de interesse e tem o raio da velha aos gritos, coisa que seria suficiente para defender a pena de morte, o aborto e a eutanásia tudo ao mesmo tempo.

Cancelo-a com McTyner, Freddie Hubbard, Joe Henderson et al. Nem tudo é mau, nesta cultura do cancelamento. 

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Entretanto as possibilidades de trabalho aparecem em catadupa - já vão em St. Martin no Inverno. Vou dizendo que sim a todas. Depois logo se vê. A taxa de sobrevivência destas coisas é sempre bastante baixa. É como nos hotéis e nos aviões: mais vale reservas a mais do que a menos. Dedicarei a próxima vida à leitura e à escrita, está decidido. O mundo não tem sítios detestáveis em quantidade suficiente para me fazer querer deixar esta vida e velhas aos gritos podem sempre ser canceladas com boa música e um par de auscultadores.

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A vista está uma merda, mas não o suficiente para perder uma semana de trabalho; a diabetes idem, mas não o suficiente para me pôr a beber menos; das dores nem falo porque me estou na stintas para elas. Passam com um comprimido de vez em quando. No fundo, só há uma coisa chata: é não estar no mar. O resto é conversa de encher blogues.

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Já aqui deixei duas palavras sobre a nota de Nuno Costa Santos ao RIO CUANZA, mas duas não chegam. Na verdade nem todo o léxico da alegria chega. Não escrevo para mim, apesar de não escrever porque quero. Cada palavra sai a ferros e dá-me tanto trabalho escrevê-las como depois cortar as que estão a mais. Ver esses dois esforços antagónicos reconhecidos enche-me de uma comoção difícil de explicar: continuo a não gostar do que escrevo e a ter vontade de mudar tudo, mas sou o pior auto-crítico do mundo e não me ligo muita importância. Daí talvez a que dou à opinião de outros. Sobretudo quando «outros» são o Nuno Costa Santos.

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A chefe da recepção da marina de Santa Eulalia é uma alemoa gorda, feia e com a flexibilidade de uma barra de aço inox de doze (centímetros). Hoje tive mais uma manifestação desse lendária capacidade de adaptação. A história é irrelevante, semelhante a tantas outras. O que me espanta é outra coisa: como é que uma pessoa para quem a expressão psico-rígida foi criada trabalha numa marina, cuja essência é justamente a mudança? Alguém com cabeça me contrataria para conduzir autocarros?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.