31.7.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2022

Abusei dos restos do indiano de ontem - sem frigorífico ficaram todo o dia ao calor - e agora sinto-me mal, claro. Enfim, não são apenas os restos do jantar de ontem que me põem neste estado. A Cantina está cheia de gente da Copa e como sempre estes gajos não sabem falar sem ser aos berros. (Em Portugal seria a mesma coisa. Acho que só na Suíça conseguiria estar agora, se não estiver muito calor lá também). Ao barulho e ao mau-estar junta-se o cheiro a fritos. Está na hora de embalar a trouxa e zarpar para outro lado. Há dias assim. Vá lá, pelo menos consegui ser produtivo, mesmo se não fiz tudo o que queria. O B. que faça, que é mais novo e mais bonito do que eu.

(Cont.)

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A solução é simples e está perto: bar Coto. Tem ar condicionado e gin tónico para matar as putas das bactérias do indiano. Das várias mudanças - evoluções, talvez, não? - que vejo em mim à medida que a antiguidade avança, a que mais me espanta é esta crescente intolerância ao calor. Como será com o frio - estará a ficar mais suportável?, como se a tolerância se movesse ao longo de uma régua, jogo de soma nula? Não sei. Tenho de esperar pelo inverno para ver. O mais provável é que não, que a intolerância ao frio aumente e que para a velhice tenha de me rodear de aparelhos de controle da temperatura, como os velhinhos, coitados.

O bar Coto é um bar metido a artistíco, «inspirado por Frida Kahlo» (aspas porque cito). Fica na praça Drassana, perto do insofrível e abominável Corner. De vez em quando venho cá, tenha ou não batérias para exterminar. Tanto a comida como os preços são decentes, a música é uma semi-merda mas pelo menos está baixinha. Decoração a condizer com o objectivo, empregado com duas queue-de-rat na barba (esta coisa de os empregados de bar pensarem que trabalham num circo é universal), mesa demasiado baixa. As sacanas das bactérias vão cedendo, lentamente. A carcaça é antiga mas sólida, graças a Deus. Mal passe o calor volto para o meu buraco no meu P. Amanhã vou dar uma volta pelas empresas, ver se encontro alguma coisa para Setembro - não sei como estará o P. e quero ter massa para passar um ou dois meses em Lisboa, em Genebra ou onde me der na gana. Umas coisas são certas: este Inverno vai ser passado em St. Martin ou na Martinica, vou aumentar a minha tarifa diária, ganhar ao totomilhões, aprender a gerir a massa, escrever um bestseller e transmitir tudo o que sei ao meu neto Leonardo, abençoado seja, coitado. (Enfim, algumas são mais certas do que outras.)

Pergunto ao rabicho de rato se o cozinheiro me pode fazer um spaghetti agliolio (as bactérias ainda não morreram todas). A resposta veio pouco depois. «Não: a comida aqui é toda congelada, não temos nada fresco.» Spaghetti, alho e azeite... Frida, cala-te.

É tempo de embalar a trouxa, etc.

(Cont.)

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Pareço um carteiro à frente de filas e filas de caixas do correio. Vai tirando as cartas do saco e atira-as ao acaso. Uma acaba por acertar: Casa Colombia, um restaurante perto do mercado, onde antigamente havia um indiano. Bom merengue, consegue o prodígio de me tirar desta modorra. Arepa con queso, um copo de vinho tinto fresco e hey, presto, as bactérias vão para o galheiro de vez.  Verdade seja dita: as caixas de correio não são apenas sítios onde comer hoje. Toda a minha vida é um conjunto delas, as cartas são as mais diversas possível. Algumas até vão vazias, aposto: as palavras não as encontraram a tempo. Buscam suportes, peles, desejos, planos, futuros. Andam por aí a esvoaçar como andorinhas tontas. Uma das cartas vai de certeza cair na caixa certa: a que vai dirigida ao beliche no meu P., não tarda. 

Esta cidade aos domingos é uma seca. Bom, não sei se é aos domingos ou se é quando um gajo está seco. A cidade não passa de um espelho; cheio de alemães, é certo e de suecas de mamas quase ao léu, afundadas em perfume, loiras de magoar a vista de quem as vê e vestidas de magoar o resto. Aqui nas imediações do mercado não há nem alemães nem suecas nem perfumes nem mamas: uma mesa com três latino-americanos, não oiço de onde e uma sujeita vestida «normalmente», cheio de aspas porque não sei o que quer (ou quero) dizer.

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O restaurante está praticamente vazio mas o homem deve estar sozinho e a merda da arepa demora uma eternidade. Há dias assim, parece que nos debatemos com um elástico que nos agarra à seca. Cada vez que nos afastamos dela, o elástico puxa-nos de volta.

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