5.7.22

Diário de Bordos - Santa Eulalia, Ibiza, Baleares, Espanha, 05-07-2022

É prerciso começar por dizer que tenho uma embirração de estima com Ibiza. É uma ilha linda, estragada pelas linhas que não são de comboio que por aqui se consomem e com preços aberrantes porque as pessoas que cá vêm gostam de pagar preços elevados. Eu não gosto e acho que nove euros por um affogato al amaretto só não é roubo porque ninguém me obriga a encomendá-lo. Nem eu, sequer. Mas o sacana do bife com pimenta verde estava tão bom, o vinho tinto é tão «acessível» (aspas porque relativizo) que decido ceder à chantagem.

Percebo porque custa nove euros: o gelado - podre de bom, ma parole - vem numa taça, o café numa cafeteira à parte (já com o amaretto) e a argentina que me tem desenrascado o jantar serve-o sobre a mistura de baunilha e chocolate. Estou para sempre grato ao Claudio, que me ensinou o que é um affogato e à pizzaria Amore, na marina de Santa Eulalia, por me mostrar como se pode sofisticar uma coisa que começa por ter um nome horrível e não passa de uma bola de gelado afogada em café. O facto de a dita argentina ser um monumento à evolução - para além de ser a única empregada eficaz, o que não estraga nada - é irrelevante, claro.

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A viagem foi chata. Perdi três defensas, por culpa irrevigável e indiscutivelmente minha e tive um sobreaquecimento no motor de bombordo. Plástico na admissão de água de arrefecimento. Onde anda o Miguel Lacerda quando precisamos dele? (Isto é só para dar graxa, Miguel. Tirei o plástico em cinco minutos, sem óculos nem barbatans. Só um cabo amarrado à cintura, não fosse o bote dar-me uma marretada na cabeça.)

A minha embirração com Ibiza tem agora uma excelente oportunidade de crescer um bocadinho, porque antes de quinta à tarde não saio nem a ferros.

A menos que haja um milagre, claro. Ou que as alterações climáticas façam uma pausa. De tanto mudarem devem estar tão exaustas como eu.

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Fui contratado para trabalhar (creio que) duas semanas num veleiro baseado em Gibraltar. Ainda não tenho pormenores: sei a data de começo e quanto serei pago por dia. O resto ficou para amanhã, por comum acordo entre mim e o senhor que me contratou. Ele porque está num jantar com amigos e eu porque estou exausto e não me apetece falar de trabalho depois de um bife de meio metro de altura com pimenta verde e de um affogato al amaretto com classe. Cheio de classe, diria mesmo, se isso fossem coisas das quais um cavalheiro pode falar sozinho.

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A conta vai chegar e vou como sempre torcer-me para saber se corto algo e se sim, quanto. É sempre a mesma coisa. De um lado um gajo a dizer-me para não abusar, do outro uma gaja (suponho) a perguntar-me porque hei-de fazer favores a gajos que ganham numa semana o que eu ganho em dez anos. (O debate é académico. Acaba sempre com o gajo a ganhar e a gaja a ser mandada calar com um «shiu!» irrebatível.) Nasci D. Quixote sem Sancho, só com pança e assim continuarei.

A conta chegou e enganei-me nos cálculos: trinta euros menos do que esperava. Perguntei a um gajo da marina onde comer, ele indicou-me isto e pronto, engano-me. O Rocinante vai dar saltos de contente, imagino. Já eu vou dormir, não sei se antes se depois de um duche. Amanhã tenho o dia todo, com um raio. E ainda tenho a cama por fazer, exercício não despiciendo.

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