10.3.23

Diário de Bordos - Lisboa, 10-03-2023

Sexta-feira é o pior dia da semana. Acordo a pensar que o que não aconteceu nos quatro dias precedentes vai acontecer hoje, porque é o último de um ciclo; depois, lembro-me de que se não acontecer, esperam-me dois dias em que nem a esperança de que venha a acontecer há, que um novo ciclo recomeçará a seguir a esses dias vazios. Para quem espera, o fim-de-semana são os dias do desespero e sexta-feira o dia que o antecede. Como estar à beira do poço e saber que se vai cair nele, inexoravelmente. É o último dia que nos pode impedir essa queda. Último dia e queda que se repetem semana a semana.

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A autoflagelação é a pior forma de tortura: só nos podemos culpar a nós próprios. Ou a melhor: só nos podemos culpar a nós próprios. Não sei. Ser-se responsável (e culpado, também) por tudo o que nos acontece é simultaneamente carregar um peso e alijar esse peso. Talvez no fundo seja uma forma aceitável de misantropia. Uma forma humana, por assim dizer. (Como se houvesse uma forma marciana de misantropia...)

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Não há maneira de acabar, este Inverno. Não tem fim à vista. Ao frio e ao gelo seguem-se mais gelo e mais frio. (Este «não tem fim à vista» é mais do que uma expressão: enquanto os meus olhos não estiverem como deve ser nada terá fim à vista. Estou a ser atacado por todos os lados ao mesmo tempo, como se estivesse cercado. Vá lá, pelo menos dos olhos não posso dizer que sou responsável. Ninguém é. Se ao menos Deus existisse...

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E assim fecho o círculo: um dos temas desta manhã foi a existência de Deus. Claro que existe: é uma construção humana e «tudo aquilo em que um homem acredita é uma imagem da verdade», parafraseando Blake, esse grande visionário. O contrário é verdade também: Deus não passa de uma construção humana e como tal não existe autonomamente. É uma parte do homem. É um assunto que me é estranho. Entre a liturgia católica e os ritos voodoo a diferença é de estilo, não de substância. (Por isso tão pouco alinho na fúria anti-Igreja por causa dos abusos: a Igreja não é diferente das outras organizações humanas.)

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Cada vez que vejo a data para o título destes diários de bordos arrepio-me. Já Março vai em quase metade e o P. como estava há seis meses.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.