6.3.23

Diário de Bordos - Lisboa, 06-03-2023

Passo muito de raspão por um título do Público segundo o qual uma tartaruga bebé andou à deriva seis mil quilómetros. Não interrompi o zapping frenético para ler a notícia. Tenho algumas dúvidas sobre a adequação do verbo derivar mas a verdade é que estou mais preocupado com a minha "deriva" (aspas porque aqui tenho a certeza de que o verbo não é o adequado) do que com a possível deriva de uma tartaruga bebé. 

(Foi com a corrente do Golfo da Flórida à Irlanda, fui espreitar a notícia.)

Fico contente por ela e gostaria muito que esta surreal corrente burocrática na qual derivo chegasse ao fim, como a da tartaruga bebé, sorte a dela. Pensava que saído das garras da burocracia camarária tudo iria mais depressa, mas não: a burocracia bancária é quase a mesma coisa. A relação doentia, perversa e sádica (ou masoquista, se vista pelo outro lado) que os portugueses mantêm com a burocracia é-me dolorosamente incompreensível. 

No Burundi as agências vinham ao nosso escritório, deixavam um pedido de material, nós preenchíamo-lo e uma semana depois vinham buscá-lo. Um dia perguntei ao Anicet de quanto tempo precisava ele para executar o processo todo, do princípio ao fim. Disse-me que não sabia, nunca o tinha medido. Sentei-me com ele e juntos percorremos o caminho da A a Z: avaliar o pedido, verificar os nossos stocks, enviar aquilo para o armazém. Durou menos de dez minutos.

- Porque é que os fazemos esperar uma semana por uma coisa que nos leva dez minutos a fazer?
- Não sei - respondeu. - Sempre foi assim.
- A partir de agora vai deixar de ser. Em primeiro lugar, vais despachar todos os pedidos que tens pendentes. E o próximo que entrar é feito e entregue imediatamente. É idiota fazer esta malta sair do escritório deles, vir ao nosso, regressar aos seus trabalhos, voltar aqui e ir ao armazém quando isso pode ser feito de uma vez só (Bujumbura não é uma cidade enorme mas as deslocações eram lentas e não totalmente isentas de perigo).

Assim fizemos. Com tanta sorte que o primeiro pedido que entrou depois disto foi trazido por uma jovem que era das mais críticas do ACNUR. A moça era tão bonita quanto sarcástica e quando nos entregou o formulário fez uma observação do género "então agora venho cá para o ano, não é?"

Fi-la sentar, entretive-a com conversa de chacha até o Anicet me fazer sinal de que estava pronto e aí sim, respondi-lhe enquanto lhe dava o papel:

- Não precisas de vir para o ano. O pedido está aceite. Podes ir directamente ao armazém para eles preparem a ordem e coordenar a recolha. - A rapariga não queria aacreditar A notícia espalhou-se depressa pela comunidade da ajuda humanitária. O ACNUR aceitava ou (mais raramente) recusava pedidos de material em dez minutos.

Aposto que se os nossos burocratas soubessem que dá muito mais gozo ser admirado do que desprezado - coisa que ou ignoram ou que aceitam pacificamente - a nossa burocracia minguaria como, aparentemente, a tartaruga bebé.

(O que é que acontece à carapaça quando as tartarugas emagrecem? Ficam largas como sapatos dois tamanhos acima do bom? Caem? Minguam também?)

ADENDA - Meia dúzia ou pouco mais de meses depois tinha o processo todo informatizado. A malta das agências só saía dos seus escritórios para ir ao armazém controlar a carga. Internet no Burundi em 1994. Basta querer (e ter uma equipa que acompanha). Um ano depois de me vir embora uma das antenas V-Sat foi alvo de um atentado - a que estava do lado zairense da fronteira -  e acabou-se a net, mas durante a urgência aquilo funcionou como um relógio suíço. Precisão: basta sermos muitos a querer.

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