Chuva, frio e pubs: a primeira imagem de Dublin não é propriamente uma surpresa. Já a sujidade das ruas (pelo menos das duas que até agora vi) é mais inesperada. Depois lembro-me da quantidade de pessoas que vi ontem à chegada (meia-noite) e a surpresa desvanece-se. Sábado à noite é sabado à noite e domingo de manhã a manhã seguinte, em todo o lado.
Saindo do centro as ruas compõem-se e a obesidade continua pervasiva. Compreende-se porquê: peço um café e uma bolacha e esta tem mais chocolate do que farinha. Provavelmente para justificar a obesidade do preço, vá saber-se. O B&B aonde ficarei estas duas noites é longe do centro, num daqueles quarteirões de casas matriciais de tijolo encarnado nas quais se imagina facilmente a burguesia que Beckett tanto desprezava. Hoje muitas estão convertidas em B&B (aposto que escolhi o pior deles...) bordejando uma rua larga cheia de automóveis a toda a velocidade e de árvores enormes e paradas, a recuperar do inverno. O frio continua, o meu casaco de linho branco é notoriamente insuficiente e esqueci-me do computador na pensão.
O pretexto para a vinda foi a apresentação do livro do V. V., em inglês e tudo. A verdadeira razão é que ando há anos para conhecer esta cidade e precisar de me afastar do P. e das suas rotinas. Eis-me portanto travestido de turista cultural (não há turismo existencial, pois não?)
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Qualquer pessoa medianamente culta conhece o Trinity College, mesmo sem nunca ter vindo a Dublin. Beckett deu lá uma aula que ficaria famosa nos anais da pedagogia moderna: uma hora a olhar para a janela, sem dizer uma palavra. (Essa ideia seria retomada mais tarde por Pirsig, no seminal Arte do Zen e da Manutenção de Motocicletas.) Hoje passei pelo Trinity, cheio de gente. Não sei qual a janela que Samuel usou para manifestar o seu profundo desinteresse pelos alunos, pelos dublinenses, pela Irlanda, pela profissão e a única coisa que retive foi a quantidade de pessoas. Não era propriamente um mar de gente mas andava lá perto. Fica para outro dia. Por hoje fico com o tamanho daquilo: é enorme. Há muitos anos em Paris aconteceu-me o mesmo com a torre Eiffel, ou quase.
Conhecer a cidade fisicamente, passar da teoria à prática é isso: ser esmagado pela terceira dimensão. As duas primeiras só são apelativas intelectualmente. Passar para três faz entrar os sentidos na equação.
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Sou o pior turista do mundo e o pior é indiferença que isso suscita em mim: é total. Importo-me tanto com as minhas fracas qualidades de turista como com o que a minha avó fazia das fraldas dos quatro filhos que teve.
De modo que o dia de hoje acaba como começou: comigo cansado a percorrer Dublin de autocarro no sentido N - S primeiro e depois no inverso.
Afinal o B&B é bastante agradável. Suponho que os pessimistas o são para poderem apreciar as inevitáveis boas surpresas. Talvez só diverjamos na quantidade destas.
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A Ryanair é a pior companhia do mundo. Não é só na categoria "companhias aéreas". É em todas. Hesitei antes de comprar o regresso com ela e vejo agora que devia ter hesitado mais. O sacana do irlandês percebe a potes de transporte aéreo mas o desprezo que tem por quem lhe pagou a fortuna só não é insuportável porque tem uma justificação: é mais do que merecido. Aceitar ser tratado como merda para poupar meia dúzia de euros é desprezível
Enfim, de três em três ou quatro em quatro anos é necessário refrescar as alembraduras.
(Cont.)
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.