2.5.23

Diário de Bordos - Dublin, Irlanda, 02-05-2023

A última tarde em Dublin foi passada a esperar ardentemente a ida para o aeroporto. Sabendo quanto gosto de aeroportos não deixa de ser inquietante. Mas enfim, ajuda pelo menos a perceber porque é que Beckett, Joyce, Wilde e os outros se puseram a cavar daqui, desta amabilidade lhana, honesta - não é sequer como a genebrina, que se vê à légua ser fingida e superficial - destes prédios todos iguais, duma monotonia esmagadora, excepto em alguns quarteirões mais recentes. Fui ao James Joyce Center, que tem muito de James Joyce e pouco de Center, tentei ir ao Museu da Emigração mas a dezoito euros o bilhete de velhinhos aquilo é para velhinhos ricos, tentei ir ao porto mas era longe, fui a um pub que tem um nome engraçado - chama-se Flowing Tide e ao princípio tomei aquilo por Floating Tide - mas acabei no meu bem amado Celt. Sou de amores rápidos: esta foi a segunda vez que fui ao Celt, mas o raio do lugar tem tudo o que faz de um pub um pub adorável. A começar pela luz, que consoante o sítio onde estamos sentados ora põe tudo a preto e branco ora faz ressaltar algumas manchas de cor aqui e ali, como gotas de um cocktail numa toalha branca - ou cinzenta, neste caso. A comida é decente, os preços dementes - o choque que apanhei a primeira vez em Kinsale já se desvanecera nas vagas da memória, claro - a empregada menos simpática do que a de ontem, mas pronto, lá passei um bom bocado (nos dois sentidos do termo bom). Depois fui dar um passeio pelas ruas pedestres do centro - não se distingue particularmente de outras ruas pedestres, excepto eventualmente para um conhecedor de marcas: a única que vi que conheço foi a Marks and Spencer, mas uma loja é uma loja, chame-se Marx ou Groucho. Há uma livraria pouco atraente, ainda parei em mais um pub horrível chamado Parnell, tresandava a peixe frito e tinha luz como um café de província português. 

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De maneira cá estou no aeroporto. Na bagagem emocional levo a apresentação do livro do V. no museu judeu, o jantar de aniversário da sua esplêndida namorada, o Celt e - só isto justificaria a viagem - a visita à The Last Bookshop, um alfarrabista que é o modelo paradigmático de todos os alfarrabistas. Digo paradigmático não só por pedantice mas também para não dizer abençoado ou santificado ou bendito ou algo assim, relacionado com a santidade. Comprei dois livros e hoje a caminho do aeroporto apercebi-me de que só paguei um mas já era tarde para lá voltar, de forma agora tenho uma poderosa razão para regressar a Dublin, mesmo que a culpa do «roubo» involuntário não tenha sido minha (e o montante seja pequeníssimo). Suponho que houve um problema com o sinal da máquina que o jovem senhor usou para processar o pagamento, coisa que de resto não me surpreende absolutamente nada: não deve haver muitos sinais que atravessem aquelas pilhas e pilhas de livros em todo o lado. Vá lá, pelo menos um passou-as. Resta saber se foi a do Joyce ou a do Don de Lillo.

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Fiz poucas fotografias. A luz estava uma merda e de qualquer forma nunca passei da primeira camada da cidade. Não sou daqueles fotógrafos (não sou fotógrafo de todo) que mal chegam a um sítio vêem o ângulo certo, a focal a usar... Já uma vez por aqui escrevi que fotografo como amo e ainda por cima desta vez o wifi da máquina não estava a funcionar bem e e e... Paciência. Haverá mais vezes. Há dois ou três recantos da cidade de que gostei - um deles as imediações do museu judeu, por sinal muito perto da escola onde Beckett estudou, isto ando tudo ligado.

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Oito euros um sumo de laranja e uma barrazita de chocolate. O que eu adoro esperar em aeroportos não tem descrição. Ainda por cima o avião atrasou-se mais de meia-hora. Quando penso que há quem não goste da TAP só me apetece urrar.

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Estou no meio de uma tempestade perfeita, com ventos de todos os lados, mar piramidal, voltas de mar a rebentarem-me no convés (atenção, isto não é uma aula de meteorologia do mau tempo), frentes quentes, frias e oclusas, cristas de altas pressões, aguaceiros, nevões. Tudo ao mesmo tempo, tudo de todos os lados. Não admira que a serenidade de Dublin me tenha saltado tanto aos olhos. Que contraste com o meu tumulto interior. Enfim, tumultos, no plural.

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ADENDA: Afinal o avião está atrasado uma hora e vinte.

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