17.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-05-2023

Isto começou tudo com a hesitação habitual: "aonde é que vou almoçar?" e prosseguiu com a resposta de sempre: ao Mercat de l'Olivar. A que se seguiu a pergunta óbvia: "ok, mas aonde no Olivar?". "Ao Lucca". "Então vai ser preciso ir à Anita para esperar". "Claro. Porque não?" Passo os passos e os pormenores do vivo diálogo interno e vou directamente àquilo a que só se pode chamar "uma história palmitana". A Anita tem um vermute novo. Chama-se Montseta Grifo Reserva. Não vale um Madre nem um Padrón mas anda lá perto; e ganha pelo prazer da descoberta. Já a carbonara do Lucca ganha por ser igual à de sempre: feita com guanciale, sem um pingo de natas, pouco ovo, tagliatelle feitos ali à nossa frente... Quem quer saber o que é uma carbonara deve vir à Botegga Bolognese. Até lá, abster-se de mencionar o termo carbonara é uma obrigação, uma questão de ética. 

A mulher do Lucca faz limoncello. É o que bebo agora. Tudo isto acompanhado por dores lancinantes no ombro direito, numa espécie de batalha pela minha atenção. Adivinhem quem ganhou?

Acerta quem responder: "Tudo isso e um gelado de maracujá no Claudio". Só se consegue perceber porque é que em italiano, francês, inglês ou espanhol o maracujá se chama fruto da paixão depois de ter comido este gelado. Antes disso não passa de uma designação como outra qualquer.

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A resposta ainda está incompleta. É preciso acrescentar: tudo o acima mencionado mais um golaço de hierbas secas da Pamboleria e um Tramadol. Estes últimos já a bordo e mesmo antes da sesta. Agora sim: perante tão desigual luta a dor abandonou o campo de batalha, desistiu e deixou o terreno livre à alegria.

Um dia sem sesta é incompleto, como um carpinteiro a quem alguém tivesse cortado a mão direita e ele devesse aprender a trabalhar com a esquerda.

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A versão longa da história implicaria contar que andava a morrer por um polvo à galega, de que o melhor em Palma é o do Jaume, que está frio e portanto pus o meu casaco de linho branco e por baixo uma espécie de não-sei-quê também branco e bonito, que os restos da alegria do almoço sobreviveram à sesta e se reforçaram com algumas boas notícias (ou acções, se preferirem) da tarde e que portanto assim indumentado - roupa, alegria, bicicleta (branca também) - fui ao Jaume beber um vermute e comer polvo. Esta seria a versão longa. A versão curta: na porta estava um casal a fumar, pedi licença e entrei. Uns dez minutos depois eu estava a comentar com o Jaume a qualidade do vermute Padrón (elevadíssima, como tudo o que sai daquele balcão) e o senhor da porta entra, ouve-me falar com o patrão, de quem ele é também amigo e diz-lhe (referindo-se a mim): «quando o vi entrar comentei com a [não-sei-quantas] Este homem tem cara de homem feliz e agora vejo que também sabe viver.»

Comme quoi um casaco de linho branco por baixo de um panamá e por cima de uma qualquer-coisa branca e uma mão-cheia de boas decisões são coisas irradiantes. 

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Sobretudo as boas decisões, penso. Tenho fnalmente uma data para sair daqui. Acabou o limbo da indecisão. O próximo destino é Blanes, onde em princípio passarei o Verão. Estive lá há pouco mais de quarenta anos e só me lembro da praia, que era de nudistas e onde vi, no meio de toda a gente em pelota, uma família constituída por pai, mãe e (creio que) dois filhos vestidos dos pés à cabeça. Pareciam um bloco de granito pousado no meio do areal, um dólmen no meio de um prado.

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A má notícia do dia foi que é pouco provável que consiga ir à apresentação do livro do Alberto Gonçalves, que é no dia vinte e nove de Maio em Lisboa, no Grémio Literário, para quem isto possa ser de interesse. Para mim é e muito, mas enfim. Vamos ver se o L. mantém a sua decisão de me mandar a Menorca nesse dia, coisa que quanto a mim está tudo menos garantida.

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O Antiquari está a abarrotar e tive de vir para a cave. Poderia ser o lugar ideal para escrever se não fosse o raio do vai e vem permanente das escadas. Muito mija esta gente, bolas. E não sabem subir ou descer sem fazer barulho, parecem elefantes a andar em cima de tambores. (Nota explicativa: elefantes é como os franceses chamam aos terráqueos, precisamente porque não sabem andar sem fazer barulho. Há uma maneira de andar num barco para não incomodar quem está em baixo, coisa naturalmente desconhecida de quem não frequenta embarcações, essa espécie de tambores com velas ou motores.)

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