15.6.23

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 15-06--2023

Quanto mais tempo passo em Barcelona menos percebo a atracção que esta cidade exerce sobre tanta gente. Estes gajos são execráveis, pequenos, mesquinhos. Parecem portugueses com mais dinheiro, mas nós ao menos falamos uma língua que se percebe. A destes faz pensar num grupo de paralíticos a tentar falar linguagem gestual. As informações nos transportes públicos são péssimas e incompletas, ao contrário da minha má-vontade, pujante, viçosa e florescente. (A minha. A dos outros é abissal.) Quando penso que o serviço aqui é melhor do que em Palma belisco-me. É e sim, estou acordado. Já adorei esta cidade, já aqui passei momentos deliciosos, mas as últimas vinte vezes foi só chatices.

Bom. Isto é um exagero, claro. Um exagero e uma generalização e um preconceito sem pés nem cabeça. 

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Mas hoje foi um dia sem pés nem cabeça e posso finalmente dizer o que me vai por esta,  isto é: pelos olhos. E que me vai pelos olhos é mamas, mamas e mais mamas. Os mais preciosistas dos meus leitores dirão que por detrás dessas mamas há mulheres. Sem dúvida. Aliás, acrescento: por detrás, por cima e por baixo. Mas por questões relacionadas, sem dúvida, com a velocidade da luz, a moda (de que não percebo mais do que o que vejo) ou a idade das ditas senhoras - são cada vez mais e mais novas e não me venham cá com números que não são para aqui chamados - a primeira coisa que me chega aos olhos e quem diz olhos diz cabeça são precisamente as sobreditas glândulas. 

Pode talvez dizer-se que o dia não teve pés nem cabeça (de resto é um daqueles dias que vai prolongar-se por amanhã) mas lá que teve outras coisas teve. Entre as quais emoções, adrenalina e regalo para os olhos. 

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Barcelona pode continuar a ser a cidade chata, provinciana e chauvinista que sempre foi mas hoje consegui uma mesa no El Xiringo sem ter reservado e não posso senão orgulhar-me da sorte, da dupla sorte. Uma, de ser dotado para a manipulação, arte que herdei da minha Mãezinha, coitada, que Deus tem; e outra por... bem, não digo, ainda vão pensar que sou obcecado, coisa que não sou. Sou um esteta, o que é diferente. 

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O suquet de tamboril com que me delicio (agora que a senhora da mesa à frente se foi embora) é curioso. Começa por parecer chato e ensonso e à medida que se vai nele avançando vai ficando melhor e melhor até atingir a perfeição absoluta. Será efeito da música, uma mistura de Sinatra, Cohen, Tina Turner, Dire Straits e outros do tempo? Do vinho branco? Aposto na qualidade intrínseca do prato, na sua subtileza, no equilíbrio perfeito... Parece um quadro do Klee, vai-se descobrindo andar a andar, passo a passo até que  de repente o compreendemos

No sentido em que compreender é sinónimo de apreender.

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Querido diário, 

Passo os pormenores do dia. Não fui feito para coisas complexas, como sabes. Basta dizer-te que vou outra vez dormir numa espelunca, mas esta pelo menos está limpa. E que amanhã tenho de me levantar às cinco, outra vez.

E que a vida é uma espécie de maionese feita de melancolia e felicidade e sem a correcta mistura das duas ela fica desequilibrada. 

Ou seja: maçadora.

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O jantar acaba numa apoteose de mousse de chocolate negro regada com azeite, um milimétrico fio, vinho moscatel e Leonard Cohen.

E ainda há quem pense que estamos à beira do abismo a dar passos em frente. Estamos, mas o abismo foge mais depressa do que os nossos passos.

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O serviço está quase a acabar e o pessoal do restaurante ri-se, brinca, exala bom humor e alegria. Estou aberto a sugestões, mas para mim não há melhor sinal.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.