"Está un verano loco", diz-me Martin no seu espanhol quase perfeito. Martin é um dos poucos expatriados que conheço que aprenderam espanhol. Trabalha na Mercanautic, aonde é um funcionário competente e afável. Está podre de razão, como esta breve troca demonstra:
- Tania, o adiantamento que te dei não é suficiente, vou dar-te mais dinheiro - digo-lhe quando veio tirar as medidas para o lazy bag (sim, consegui). Claro que não estou nada preocupado com o montante do sinal. Estou preocupado com outra coisa.
- Luís, o meu problema não é dinheiro, é tempo. Deixa o sinal, não te preocupes com isso - responde-me a senhora, outra das que aprendeu espanhol.
Ou seja, traduzindo: Luís, não sonhes com ladrões, qualquer que seja a língua dos teus sonhos.
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I. continua a não dar sinais de vida. Procuro alguém para o substituir. "Luís, não sonhes com ladrões". [Mentira. Talvez. Amanhã de manhã o Enver vem a bordo. Este é fiável. Não falha. A ver quanto me vai pedir. Tem estado doente, de baixa, de alta, de operações e pós-operatórios. Aparentemente já se mexe.]
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Fim de tarde no Toni. Esta praça é fascinante: apesar do bulício consegue ser repousante. Consequência da luz, creio; da mistura de árvores (não sei identificar metade), da ausência quase total de automóveis. Na esplanada do Toni ninguém grita; nas duas que a rodeiam tão pouco. As três - Café Moderno, Café Plaça, Bar Santa Eulália, no sentido dos ponteiros de relógio de onde estou - são ocupadas maioritariamente por maiorquinos. De vez em quando lá se senta um turista ou dois, na sua maioria casais e com a adolescência há muito para trás.
A luz reflecte-se nas folhas e dá-lhes cores que vão do amarelo vivo ao verde escuro (aonde ela não chega). Essas mesmas folhas absorvem o pouco barulho e devolvem-no-lo sob a forma de paz. No caminho para aqui vinha a pensar que se descrevesse os meus dias pormenorizadamente os leitores pensariam que estava a estagiar para uma escola de filmes de terror. Bom: dois tinto de verano e uma tapa de chouriço e o filme de terror transforma-se na ilustração visual do álbum From gardens where we feel secure. Cuja audição de resto sugiro fortemente.
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Jantar na Cuadra del Maño, no meu lugar habitual (já aqui não venho há mais de um ano). O gajo do casal ao meu lado mantém o chapéu - um panamá de feira - na cabeça o tempo todo. Tira-o apenas para a selfie, quando a carne chega.
E ai da há quem diga mal das selfies.
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O meu lugar habitual é ao balcão, à frente das torneiras de cerveja. O que eu gosto de ver esta azáfama nobre que é dar de comer e beber aos outros, completamente alheados da dimensão nobre da coisa. Trata-se de servir, depressa e bem e encaixar o resultado desse trabalho. A nobreza fica para os observadores solitários (que por sinal já fizeram isto, mais ou menos).
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Termino a noite no Jaume. O Santisima Trindad é como a praça de Santa Eulália: amolece qualquer filme de terror.
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«Por favor recicla», diz um cartaz à porta do Jaume. «Per tu, per mi, pel nostre futur», assim mesmo em maiorquino. Confesso que não percebo. Há sessenta e cinco anos que reciclo tudo o que como e bebo em merda e mijo; desde os doze ou treze que converto o que sinto em palavras. Não vejo o que isso tenha feito pelo futuro de quem quer que seja. Nem o meu, quanto mais o dos outros.
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Vá lá, reciclo filmes de horror em pastorais rupestres, reciclo dinheiro em coisas variadas, bebidas e disparates (hoje comprei um modelo de paquete lindo), reciclo tudo em nada e nada em tudo. Espero que um dia a humanidade me devolva tudo o que fiz por ela.
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Ao longo destes cinco anos construí em Palma um ecossistema encantador. Tenho de falar nisto.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.