4.6.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-06-2023

Nós marinheirios não somos muito dados a «fãzices». Por um lado, o mar é um grande equalizador; por outro, todos sabemos que todos temos em nós recursos insuspeitos até as circunstâncias nos obrigarem a usá-los. Claro que de vez em quando lá aparece um ou outro que desperta um pouco mais de admiração e ou de respeito. Um Tabarly, um Slocum, uma Helen MacArthur (também não distinguimos muito os sexos. Um Homem é um homem, seja homem seja mulher), um Peyron. Tão pouco somos muito de hierarquias. Já aqui o disse várias vezes: a única hierarquia que respeitamos é a do saber. Nomes, dinheiros, famílias, opiniões políticas, posições na pirâmide social, cor da pele ou tendências alimentares (no sentido lato) deixam-nos mais ou menos indiferentes. Se o camarada que está do outro lado da manobra ou na ponte de comando sabe o que está a fazer, é ouvido. Não sabe? Arranja-se sempre maneira de fazermos como queremos dando-lhe a impressão - se for caso disso - de que ele manda. Isto passa-se no mar como em tudo. Gabriel Garcia Marquez, para mim um dos maiores escritores de sempre, é um escritor. Sei que ele era comunista porque é impossível não o saber, mas a coisa fica-se por aí. O mesmo se passa com Yourcenar, com Beckett (deste li a biografia, por acaso), com Conrad ou com alguns outros: admiro-lhes o talento, ignoro o resto. Quero ler a biografia de Pessoa por curiosidade, não por reverência.

Lembro-me sempre do Zé da Viola, outra história que já aqui contei por inteiro e agora abrevio:
- Boa tarde Zé. Eu sou o senhor Fulano de Beltrano.
- Boa tarde. É engenheiro ou é doutor?
- Nem uma coisa nem outra, Zé. Basta chamar-me senhor Beltrano.
- Senhor Beltrano o caralho. Eles aqui são todos doutores e engenheiros, porque é que você não há-de ser também?

(Isto à frente do engenheiro dono do barco. Verdade seja dita que era no princípio da tarde e o Zé - um velho pescador do bacalhau que chegou a navegar com o meu Pai - arrefinfava-lhe uma «máquina de filmar» a cada almoço, não fosse a comida assentar-lhe mal.)

Bom, no que toca a admirações, reverências, ser fã deste ou daquela: estamos conversados.

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A política dos pequenos passos tem funcionado. Não ir para a cama de estômago vazio nem antes das dez e meia da noite, cilindrar a artrose (anti-inflamatório em comprimidos e em pomada e analgésico potente. Hoje até me esqueci da porra do ombro), não pensar no P. vinte e quatro horas por dia (os meus dias são muito grandes, têm muitas horas). Hoje pelo menos funcionou. A ver amanhã. Sobretudo, ver se o que funcionou foi a mistura ou se posso começar a tirar ingredientes. Já reduzi o analgésico e até agora não me posso queixar. Bato na madeira três vezes.

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Algo me diz que ainda não foi desta que o olho esquerdo foi ao sítio. Felizmente sou meio surdo e não ligo nenhuma a algo.

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