15.9.23

Diário de Bordos - Lisboa, 15-09-2023

Vou cortar o cabelo a uma dessas «barbearias» hindus, paquistanesas ou afegãs, não sei bem. Ponho aspas a barbearia não porque não o sejam - são-no e boas (pelo menos as duas que frequento) - mas porque suspeito fortemente que aquelas lojas têm mais funções do que cortar cortar cabelos e fazer barbas. Gosto de tudo, a começar pelo preço, pelo silêncio dos barbeiros, pelas ajudas que dão ao meu sistema imunitário (cada vez que vou a uma coisa daquelas toma conhecimento com alguns milhões de bactérias, das quais muitas serão uma novidade). Hoje olhava-me para e pelo espelho e lembrei-me de quando era raro ver-me reflectido noutros vidros que não a ocasional montra. Nessa altura cortava o cabelo uma, duas vezes por ano e só nessas ocasiões me via durante algum tempo. Ou seja: uma ou duas vezes por ano era uma novidade para mim próprio. Agora, que aumentei drasticamente o ritmo das idas ao baieta e mudei outras coisas, vejo-me todos os dias. Sinceramente, não sei se fiquei a ganhar com a mudança.

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Andava há que tempos à procura da palavra e só agora a encontrei: labirinto. Que farei com este labirinto, podes explicar-mo em meia dúzia de palavras? Como entrar nele?  Construí laboriosa, metódica, cuidadosamente um labirinto mas fi-lo a partir do lado de fora. Agora quero visitá-lo, percorrê-lo, desafiá-lo, corrigir o que fiz mal e estou fechado no exterior.

Só temos uma oportunidade, não é? É. Consolo-me dizendo que antes um labirinto do que um corredor a direito ou um quarto sem janelas.

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Luta contra a burocracia portuguesa «electrónica». Acabam por me dizer que tenho de ir à Loja do Cidadão mais próxima. As minhas experiências nesses lugares não são propriamente muito encorajadores, mas como é um passeio de vinte minutos a pé vale a pena arriscar. Andar por esta cidade é sempre um prazer.

O grande problema, no fundo, é viver num país do terceiro mundo, ter aspirações a serviços do primeiro e haver cada vez menos corrupção de baixo nível. «Eles» reservaram-na para eles e não deixam o peixe miúdo comer também. Recordo com saudade o tempo em que ia uma vez por mês a uma conservatória qualquer de Ponta Delgada com uma nota de cinco contos metida entre duas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas. 

[ADENDA: Loas são devidas a quem loas merece. A minha visita à Loja do Cidadão correu maravilhosamente bem. A pequena corrupção desapareceu (ou talvez seja eu que não sei fazê-la funcionar), mas a tradicional afabilidade portuguesa mantém-se. Bem hajam os funcionários das três instituições - três - que me atenderam e resolveram tudo o que havia a resolver.]

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Somos todos iguais, excepto nas bactérias: as minhas são boazinhas, as dos outros fazem-me mal.

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"Sem advogados não há justiça", diz um painel gigante na parede da corporação dos ditos. Contribuindo assim para reforçar a ubíqua confusão entre justiça e direito, duas coisas diferentes. Se o não fossem, os advogados seriam dispensáveis. 

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(Cont.?)



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