«Bloqueio do escritor» é uma expressão enganadora. As palavras estão tudo menos bloqueadas. Antes pelo contrário: parecem água a esvair-se pelo ralo abaixo. Não é é o bom ralo. É o errado. Coisas que acontecem. Na verdade não sei como orientá-las para o lado certo. Falta de jeito, suponho. A verdade (outra) é que a amei muito mais do que agora me lembro de a ter amado e hoje vejo que tinha razão em amá-la assim, tal como tive em me vir embora e ela em mandar-me embora e tal como tenho em querê-la de novo na minha vida. Nunca sabemos bem aonde acabam estes ralos enganados e começam os certos. Que amamos, quando amamos alguém? Não sei, apesar de até agora só raramente me ter enganado. Humor, distância, olhar, mamas, o pudor, a retenção... uma mistela, é o que é e a verdade (mais uma) é que não sou capaz de lhe separar os componentes. Nenhum deles vale por si, isso sei. Trágico seria se não soubesse, de resto. Trágico seria se não fosse capaz de lho dizer e como não sou sigo o conselho do outro: «Luís, você não devia falar. Você (era dos que tratava toda a gente por você, incluindo o cachorro) escreve muito melhor do que fala. Cale-se e escreva.» O problema, claro, é que escrevo para mim. Não é bem um problema, note-se. É uma vantagem. Assim sempre posso dizer tudo o que quero. Como por exemplo revisitar o passado, feito herói de um filme que só tinha uma personagem e essa personagem era eu. Bom, podemos dizer que tinha duas personagens: ela e eu. Hoje consigo pôr-me na cabeça dela. Duas. Três, se contarmos o gajo que nos pôs de novo em contacto. Quatro, se incluirmos o tempo, o cilindro compressor do tempo, que neste caso não comprimiu nada, de resto. Antes pelo contrário: descomprimiu. Como se alguém tivesse posto um tampo no ralo e as palavras começassem a flutuar. A verdade é que só temos vontade de reatar aquilo que não acabou, não é? As palavras flutuam, os sentimentos também, parece uma sopa, temos os ingredientes todos juntos mas se os separarmos já não é a mesma sopa. Escrevo isto tudo por causa do bloqueio do escritor, está bem de ver, é uma invenção do princípio ao fim. Enfim, mais ou menos. Do princípio? Ao fim? Mas aquilo teve um princípio? Teve um fim? As respostas são: não e não. Antes de começarmos ela já cá estava e depois de acabarmos continuou. Como os rios: todos pensamos que têm uma nascente e não têm. Têm muitas. E uma foz? Tão pouco. Isto é, ter têm, mas não passa de uma ilusão. Um rio nunca acaba, como alguns amores. Desaparecem para reaparecer alhures, disfarçados de amor novo. Mas não são. São o mesmo, revisitado pelo tempo. Como um fato que vem da lavandaria: alguém se lembra da nódoa que tinha quando para lá foi? Não, claro. Mas é o mesmo fato, um bocadinho mais usado (isto é uma qualidade), um bocadinho melhor, mais ajustado, mais conforme, mais... como dizer? mais epidérmico. Raio de amor este, que se me cola à pele como um rio ao leito e me veste como se a vida vestisse fatos. Não veste, meu caro: a vida anda de farrapos e tu, escritor, transformas esses farrapos em fatos de cerimónia, nos dias em que o bloqueio te leva para os estranhos territórios dos amores que não morrem, como se fossem geisers.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.