7.10.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-10-2023

Em Palma não há um único bom restaurante indiano. Atribuo essa triste situação à falta de bons clientes de restaurantes indianos.

(PS - Tenho ido ao Johnny's. Não é grande coisa mas tão pouco é péssimo e pelo menos o gajo é simpático.) 

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Ontem a U. falou-me num mercado biológico na Plaza de los Patines e hoje lá fui, rapazinho obediente que sou. É pequeno - um terço, um quarto do do Princípe Real, ou daquilo que dele me lembro. Comprei alguma fruta a preços bastante biológicos e vim para o Sa Caravana, o café que fica ao lado. Os mercados e as praias apreciam-se melhor de fora, dos cafés que os rodeiam. O Caravana está cheio, o pessoal é visivelmente insufuciente - mais tarde perguntarei a dois dos empregados e deram-me a mesma resposta: não é habitual estar assim com tanto movimento - e eu aprecio esta azáfama, o barulho que é muito mas consegue não ser agressivo, a clientela jovem - famílias nos trinta, quarenta, quase todas com crianças - branchée (já consigo dar um desconto às malditas tatuagens, tão feias mas tão ubíquas que um tipo acaba por não as ver). Tenho pena de só agora ter sabido deste mercado e ao mesmo tempo regozijo-me do empurrão motivacional que ele é: tenho de pôr esta p. deste P. a funcionar!

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Escrevo com a Parker que comprei na Feira da Ladra. Fico com as mãos cheias de tinta. Esta não tarda vai para casa fazer de decoração. Só me faz lembrar o dia nefasto em que perdi uma igual em Antigua, herança do meu Pai. E não, não preciso de uma caneta para me lembrar Dele.

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As manhãs de sábado misturam o movimento das da semana e a calma, o relaxamento e a atmosfera das de domingo. Os judeus escolheram mal o dia de repouso.

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Um «prego» no Joan, um gelado no Claudio e um rum na Cantina. Ainda há quem seja contra o aquecimento global? Por mim, venha ele, muito e forte.

Um prego aqui chama-se «serranito» ou llonguet serranito, de seu nome completo. Llonguet é o nome genérico das sanduíches feitas com um pão igual ao nosso papo-seco. O Joan tem duas versões - a normal e a picante. Com os croquetes de chipirones são o meu prato favorito do bar Rita, aonde ontem fui com a U. e aonde já não ia há muito tempo. Tempo demais, aliás: aquele lugar é uma pequena injecção de pertença.

Périplo do dia, que à tarde intitulei «Bem vindos ao mundo encantado do Luisinho Serpa» e agora só alteraria para Luís Serpa, porque o tempo fez das suas e amaciou os ângulos. Acontece que ao lado do mercado biológico há um restaurante chamado Celler de Sa Premsa que é um clássico de Palma. É o único restaurante do mundo aonde um empregado me desaconselhou o vinho da casa - podre de razão, como vim a comprovar por o ter pedido na mesma. É imbebível. Acontece que no menu têm beringelas recheadas, um prato que a minha Mãe fazia amiúde e do qual sou apreciador impenitente. Meteu-se-me na cabeça que hoje o almoço seria isso. Vim a bordo deixar a fruta do mercado e avisar a senhora do Corb Marí de que teríamos de deixar o schweinshaxe para segunda-feira e ala para o Celler. O qual estava cheio, só com reserva, filas à porta. Até as reservas tinham de esperar. «Pouco importa», penso. «Vou ao Don Caracol», outro clássico, «lá terão as beringelas». Não têm, Vou ao Puente. Idem. Espreito na Cantina Patrón Lunares, um restaurante de resto lindo aonde fui uma vez com a T. e nunca mais voltei, injustamente.A dona foi de uma simpatia indescrítivel, a coisa menos maiorquina que me foi dado ver desde que aqui cheguei pela primeira vez. Enquanto eu bebia um sublime vermute «caseiro» (aspas porque cito, não porque duvide da origem caseira da coisa) telefonou para tudo quanto lhe ocorria que poderia ter as beringelas. Neste ponto começo a lembrar-me de um conto de O'Henry em que a mulher da personagem principal, grávida, quer comer creio que morangos mas é Natal e o desgraçado do marido dá três voltas à cidade até encontrar os morangos (?), só para chegar a casa triunfante e ouvir a mulher dizer-lhe que afinal o que ela quer é laranjas - o homem tinha ouvido, durante todo o périplo, «não temos morangos, mas se quiser laranjas...» Não é o melhor conto de O'Henry, o desfecho é demasiado previsível, mas é um conto do qual me lembro frequentemente. Hoje tendo sido uma dessas frequências. Saio do Lunares rumo à casa Maruka, que não conheço mas que aparentemente tem o raio das coisas. Há fila à porta e lembro-me de telefonar ao Sa Premsa - agora, uma hora e quase meia depois talvez haja mesa. 

Há. Resultado: fiquei a saber que o El Puente está transformado num buraco para turistas, que o Can Frau, no mercado de Santa Catalina - propriedade ou gerido ou assim de um português que está em Mallorca há tanto tempo que já nem sabe bem de onde é - costuma ter beringelas recheadas, que a casa Maruka talvez não seja má mas parece cara e - sobretudo - que tenho de ir mais vezes ao Sa Premsa e tenho absolutamente de ir ao Lunares. Confirmei ainda que a bicicleta BH Glasgow foi feita para circular pelas ruas desta - ou de outra - cidade (e eu para ela), que o plano, quase abandonado, de partilhar o meu tempo entre Lisboa, Genebra e Palma deixa de estar abandonado pela mesma razão que leva as árvores a desenvolver raízes aonde as plantamos e não só aonde elas apareceram e, finalmente, que nos vinte anos que me restam de vida tenho de aprender a fazer carne picada como a minha Mãe fazia porque as beringelas recheadas de Mallorca não têm nada a ver com as da tia Blá - Blazinha sem tia para o meu Pai - apesar de serem muito boas. (Não há prato que leve beringelas e seja mau, mas isso são contas de outro rosário.) 

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A retranca está a bordo e só não está no sítio porque quero pôr uma porca no cachimbo, aquilo está demasiado frágil (o J. W. diz que está no limite). Os passos podem ser milimétricos mas pelo menos são dados, todos os dias, um após outro. Já não sei quem me recomendou a Rigging Point quando cá cheguei vai para quase seis anos mas sabe Deus que foi uma divina recomendação.

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O objectivo para a semana é pôr a cozinha do P. a funcionar. Vamos ver quanto tempo leva? Já falta muito pouco. O principal problema é que ainda há trabalho a fazer no interior e eu não quero encher aquela porcaria toda de pó de kevlar / carbono...

Às vezes - raramente, verdade seja dita - penso no que era o P. quando aqui cheguei, no dia dez de Março de 2018 - e no que é hoje. É uma homenagem àquele dito segundo o qual «as aparências iludem»; e outra à minha convicção de que o essencial não é o que se vê; e uma ferida aberta: eu queria muito que o exterior reflectisse todo o esforço que foi feito no que não se vê. Tenho de começar a jogar no totomilhões... 

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Tenho, sobretudo, de começar a pensar no que será a minha vida quando a começar a vivê-la do interior. De passagem, até em mim...

(Bom, mas quem não está?)

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Comprei mais uma tartaruga ao gajo das madeiras, no Paseig. Não é que queira viver tanto como elas - não quero - mas quero viver à velocidade a que elas envelhecem.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.