29.12.23

Em defesa da gravidade e outras liturgias

A música mudou para Paul Desmond: Glad to be unhappy. Não há melhor forma de definir este ambíguo estado em que ando há semanas: tudo avança lentamente - mas avança; anda tudo louco com os preços e não há outra forma de lhes escapar senão ficar em casa a ouvir - por exemplo - Paul Desmond; chove cada vez menos, a tal ponto que a chuva é agora a bênção de sempre; refresca o ar, limpa-o e faz crescer esta vegetação que dá ideia de crescer só de pensar em água. A paisagem é linda e a provável mudança em breve para outro apartamento menos bem situado não me aflige muito: duas semanas aqui encheram-me o cesto para três meses, no mínimo. Sei - daquele saber calmo e relaxado a que Mitterrand (ou o seu publicista, um tipo famoso nessa altura em França) chamaram força tranquila - que no fim todas as bolas cairão no seu devido lugar. Basta segui-las com o olhar, não me agitar demasiado - não agitar nada, na verdade. Ir fazendo as coisas da mesma forma que os planetas seguem a sua órbita ou a mulher que amamos se apaixona por nós: devagar, até o contrário lhe ser impossível. (Isto não é uma aula de astronomia, relembro. Nem de sedução. Para isso leiam o Kepler ou o Baudrillard.)

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Há qualquer coisa de especial numa terra que me faz não me importar de guiar. É simples e fácil de definir: chama-se gentileza. As pessoas aqui são de uma gentileza ao volante de que só tenho comparação na Venezuela dos anos setenta. Conduzem como doidos em anfetaminas, mas param para nos deixar passar, não buzinam, tudo flui como se os automóveis fossem imunes à agressividade. Preferiria uma bicicleta, é verdade, mas esta vista paga-se com uma subida para a qual já não há pernas. Sorte tenho e muita que ainda haja olhos.

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T. foi ter a sua primeira entrevista para um trabalho. Acha três semanas muito longo para encontrar um trabalho. Eu não acho, mas isso serve de pouco: tem de aprender por si.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.